Desemprego dobra e ‘inflação dos pobres’ dispara 40% na pandemia

Folha de S.Paulo – 30/10/2021 –

A inflação oficial pouco acima de 10% em 12 meses mascara reajustes equivalentes ao dobro disso no principal grupo de produtos consumidos pelos mais pobres, os alimentos. No período, eles subiram cerca de 20% —e quase 40% desde o início da pandemia.

O forte aumento no período agravou um cenário de disparada do desemprego na metade mais pobre do país. De 2014 a 2019, a desocupação nessa parcela da população quase dobrou (para 21%); e voltou a subir mais 8,5 pontos percentuais na pandemia.

O resultado da combinação de alimentos e desemprego em alta é a queda aguda do poder aquisitivo dos mais pobres, com o aumento da fome e da miséria no Brasil.

Segundo especialistas, para que os preços se estabilizem ou caiam nos próximos meses, é esperado que a atividade econômica e o emprego sofram ainda mais, repetindo o roteiro a partir de 2015, quando a inflação oficial (IPCA) cedeu de 10,67% naquele ano para 4,31% em 2019.

Para que isso ocorresse, no biênio 2015-2016 o PIB brasileiro afundou 7,2%; e o Banco Central elevou a taxa básica de juro (Selic) para 14,25%, praticamente ao dobro da vigente dois anos antes.

Desta vez, a elevação dos juros em andamento e a necessidade de esfriar a economia para derrubar a inflação pegam o Brasil bem mais fragilizado —e pobre— do que em 2015.

Em 2014, antes do início daquela forte recessão, a taxa de desemprego média calculada pelo IBGE havia sido de 4,8%, o menor nível da série. Em agosto último, era quase o triplo: 13,2%.

Nos últimos anos, o aumento da desocupação dilapidou a renda do trabalho. Tomando-se um período mais longo, de dez anos até 2021, o rendimento da metade mais pobre no país retrocedeu 26,2%, segundo dados da FGV Social.

Só nos últimos 12 meses, período em que os alimentos dispararam 20%, a renda real familiar per capita do trabalho na metade mais pobre despencou 18%, de R$ 210 mensais para R$ 172.

Embora o valor não inclua outras rendas, como o Bolsa Família ou o auxílio emergencial, trata-se do menor patamar para a renda familiar do trabalho em mais de uma década —e num cenário de aceleração inflacionária.

Para Andre Braz, coordenador do Índice de Preços ao Consumidor (IPC) do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), mesmo o aumento do juro pode ter impacto limitado na inflação caso preços dolarizados, como os de combustíveis, continuem subindo.

“A gasolina pode até ser considerada bem de ‘luxo’ para os mais pobres. Mas o diesel [+35% de alta neste ano] é perverso, pois contamina tudo, de hortaliças ao transporte público. Com o dólar em alta, a tendência também é que mais alimentos sejam exportados, pressionando preços aqui”, afirma.

A pedido da Folha, Braz separou no IPC da FGV a variação de preços em 12 meses de alimentos de alto consumo entre os mais pobres. A alta média foi de 21,5%.

A lista nem incluiu o gás de botijão, que subiu mais de 30% neste ano e 45% desde o início da pandemia —e que muitos pobres deixaram de comprar, passando a usar lenha para cozinhar.

Segundo Guilherme Moreira, coordenador do IPC da Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas), com a disparada nos preços de alguns produtos consumidos pela baixa renda (como o gás em botijão), os índices de preços podem inclusive não estar refletindo com qualidade o comportamento da inflação.

“Alguns produtos que fazem parte da coleta de preços simplesmente deixaram de ser consumidos”, afirma. Itens que têm menos peso no índice podem estar sendo mais consumidos agora —e vice-versa.

Outro complicador é que o índice de difusão de preços de alimentos, que mostra o percentual de itens aumentando, está em 65% no IPCA, bem acima dos 50% em 2019 —fato que limita dribles na inflação com a troca de produtos.

Moreira destaca que o comportamento dos preços dos alimentos tem sido extremamente negativo para os mais pobres. “Existe a falsa impressão de que os mais ricos sofrem tanto quanto os demais. Mas, para uma família muito pobre, 20% a mais no preço da comida significa passar fome”, diz.

Segundo estratificação do Datafolha, 57% das famílias brasileiras atravessam o mês com menos de R$ 2.200. Mas a renda é muito menor para os realmente pobres.

De acordo com a FGV Social, 27,4 milhões de brasileiros (13% da população; quase uma Venezuela) vivem hoje com menos de R$ 261 ao mês —a maior taxa de miseráveis em uma década.

A dinâmica do mercado de trabalho, extremamente negativa para a baixa renda nos anos recentes, também foi bem menos danosa para os mais ricos.

Enquanto a taxa de desocupação da metade mais pobre mais que dobrou desde 2014, o desemprego entre os 10% mais ricos passou de 2% para cerca de 3% no período, segundo a FGV Social com base nas PnadC (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua) anual e trimestral.

Para Marcelo Neri, diretor da FGV Social, o aumento do desemprego entre os mais pobres nos últimos anos decorreu sobretudo do processo de desinflação pelo qual o Brasil passou entre 2015 e 2019.

“O que vimos ali pode ser um trailer do que talvez tenhamos que reviver agora, com mais desemprego ainda, para que a inflação volte a ceder”, afirma. “Infelizmente, desta vez, já sofremos de dois males simultâneos: inflação e desemprego muito elevados.”

Braz, do Ibre-FGV, acrescenta que muitos dos mais pobres que perderam vagas na pandemia podem acabar estruturalmente desempregados. “Muitas empresas adotaram permanentemente o home office, eliminando empregos menos qualificados que atendiam os que ganham menos, como faxineiros e porteiros, entre outros.”

Segundo a pesquisadora do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) Maria Andréia Parente Lameiras, o atual processo de aumento da taxa básica de juro pelo Banco Central tende a ser “muito perverso” para os mais pobres.

“Automaticamente, estaremos prejudicando o mercado de trabalho e o crescimento. E os mais pobres e menos qualificados acabarão no fim da fila de uma eventual recuperação.”

Segundo ela, ao contrário das faixas mais ricas, que podem ter a opção de adiar a compra de alguns bens, os mais pobres não têm como deixar de comer. É nessa área, por causa da necessidade diária de consumo, que os repasses de preços podem continuar com mais força.

A segmentação dos itens para a coleta de preços no IPC da Fipe deixa claro como o grupo alimentação tem influência maior sobre os mais pobres. Seu peso é quase o dobro (29% do total) para as famílias que vivem com até três salários mínimos em relação às que ganham mais de oito salários mínimos.

As diferenças de peso sobre o orçamento são ainda maiores quando se trata de tarifas de energia, água e esgoto, uso de gás de botijão e gastos com aluguel —itens que têm contribuindo muito para achatar a renda dos pobres.

Para Silvia Matos, coordenadora do Boletim Macro Ibre-FGV, o peso dos alimentos é ainda mais alto do que os índices disponíveis refletem quando se trata, por exemplo, de pessoas que fazem parte do Cadastro Único (que reúne famílias em situação de extrema vulnerabilidade).

Segundo trabalho de mestrado de um de seus alunos sobre o tema, para essas pessoas no Cadastro Único, a alimentação chegava a ter peso de 40,3% na inflação em 2018. “Para os muito pobres, a tragédia da inflação tem sido bem maior”, afirma.

Para os próximos meses, no entanto, é possível que se consolide uma perspectiva de alta menos intensa nos preços de alimentos, segundo Sérgio Vale, economista-chefe da MB Associados.

“As commodities agrícolas têm apresentado alguma desaceleração, e podem ter um comportamento mais comedido em 2022. Mesmo assim, a ‘sensação térmica’ entre os consumidores, sobretudo os pobres, continuará muito ruim. Pois os preços e o desemprego continuarão em patamar elevado”, diz Vale.

Em suas projeções, o triênio 2020-2022 deve terminar com uma inflação acumulada superior a 18%; e com o PIB per capita 1,8% menor.

“Será um período longo com a sociedade empobrecida ou na miséria, sem grandes condições de voltar ao mercado de trabalho e se manter”, afirma.

Especialistas concordam que a maior incógnita à frente é como o governo Bolsonaro e o Congresso vão se comportar em relação ao chamado teto de gastos, instrumento criado em 2016 para limitar o aumento da despesa pública à inflação e, com isso, estabilizar a dívida pública.

A decisão, há alguns dias, de burlar essa âncora fiscal no ano eleitoral de 2022 provocou o aumento do dólar, com impacto na inflação e nos juros futuros.

A mudança no teto, que inicialmente visava aumentar os valores e a cobertura do chamado Auxílio Brasil, dirigido aos mais pobres e trunfo eleitoral de Bolsonaro no ano que vem, pode agora inflar emendas parlamentares e outros gastos acima da correção inflacionária.

O resultado dessa perspectiva tem sido o rebaixamento das projeções de crescimento para os próximos meses —num quadro já muito difícil para os mais pobres.

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