Aconteceu há cerca de dois meses no estado de São Paulo: esposa e filhos de uma família bilionária receberam doações do patriarca —ainda em vida— no valor de R$ 48 bilhões e não pagaram nada de imposto.
O procedimento é conhecido entre tributaristas: remessas em espécie ou dissimuladas de integralização de capital são feitas a empresas em paraísos fiscais para depois retornarem ao país na forma de doação das quotas destas empresas aos herdeiros. Assim, a família deixou de pagar R$ 2 bilhões do imposto incidente sobre doações e heranças (ITCMD).
Apesar da baixa arrecadação em quase todos os países onde esse imposto existe, as alíquotas são muito superiores às encontradas no Brasil. No Japão, pode chegar a 55%, e na Coreia do Sul, a 50%. França e EUA tributam em 45% e 40%, respectivamente. Também é verdade que, em alguns países, a maioria dos patrimônios é isenta: nos EUA, patrimônios com valor abaixo de US$ 11 milhões (R$ 60,4 milhões) não pagam impostos sobre herança.
No Brasil, as alíquotas vão de 4% a 8% e, assim como as faixas de isenção, variam entre os estados. Para heranças de um único imóvel, em geral estão isentos patrimônios de até R$ 70 mil. Seu perfil acaba sendo injusto: em muitos casos, herdeiros de patrimônios de R$ 250 mil já estão sujeitos às alíquotas máximas, enquanto os super-ricos têm à sua disposição inúmeras estratégias de planejamento sucessório para evadir do pagamento do imposto. É importante lembrar que, antes de 1988, e, em particular, antes de 1965, as alíquotas do imposto de herança no Brasil variavam entre 35% e 65%, dependendo do estado.
No livro Capital no Século XXI, Thomas Piketty sugere que a concentração de riqueza pode atingir níveis extremos no futuro. O argumento central é baseado naquilo que denominou “lei fundamental”: a tendência da taxa de retorno do capital superar a taxa de crescimento econômico. Logo, basta que pessoas que vivem de renda de capital (rentistas) economizem uma pequena fração de seus rendimentos para que sua riqueza aumente mais rápido do que a renda da economia como um todo. Em bom português: os rentistas se apropriariam de uma fatia cada vez maior do que é produzido pela sociedade.
De fato, em relatório recente que avalia elites de 32 países, os economistas Casas e Cozzi definem nossa elite como “rentista”: concentra muito poder e contribui pouco para o desenvolvimento do país. Estas são questões importantes para avaliar o funcionamento de uma sociedade e se podemos considerá-la justa ou, em algum grau, meritocrática.
Outra tendência histórica apontada no livro de Piketty é a de que grandes intervenções na distribuição de renda e riqueza só seriam possíveis em tempos de convulsão social como guerras ou crises econômicas.
Depois de 60 anos debatendo seu sistema tributário, a França instituiu seu imposto de renda para financiar o esforço de guerra de 1914. Na Inglaterra, durante a Primeira Guerra Mundial, houve grande aumento na alíquota do imposto sobre lucros, que chegou a 80%. Foi também logo após a crise de 1929 que o presidente americano Roosevelt elevou drasticamente a carga tributária e a progressividade do imposto de renda nos EUA: a alíquota máxima chegou a 75%.
Desde o começo da pandemia do Covid-19, o governo brasileiro discute como financiar benefícios sociais que atenuem o choque sofrido pelos brasileiros afetados pela crise. É sabido que a desigualdade de renda no Brasil é enorme: enquanto os 5% mais ricos ficam com 50% da renda nacional, os outros 95% da população dividem os 50% restantes. Outros trabalhos documentaram que, ao contrário do que se pensava, a concentração de renda no topo não diminuiu durante os anos de governo do PT.
É plausível supor que a concentração de riqueza seja ainda maior do que a de renda, não só pelo efeito de poupança ao longo da vida mas também porque a riqueza pode ser transmitida de uma geração para a outra. Quanto maior? Não se sabe. Estimar riqueza é mais difícil e há menos fontes de dados. As pesquisas domiciliares usadas para auferir a renda dos indivíduos não capturam informações sobre o patrimônio dos entrevistados e subestimam os rendimentos dos mais ricos. Por isso, o meio mais comum de superar este problema é usar dados tributários que, por sua vez, são muito protegidos no Brasil.
Um caminho para conhecer melhor a distribuição de riqueza no Brasil seria usar dados do imposto de herança para aplicar o método de “multiplicador de heranças”. A ideia é que os mortos são uma boa amostra dos vivos, e a herança uma fotografia da riqueza do falecido. Ao reponderar a distribuição de heranças usando o inverso da probabilidade de morte obtém-se uma aproximação da distribuição de riqueza.
Os estados brasileiros possuem arquivos individualizados com o valor das heranças e número de herdeiros. Com a ajuda do Comsefaz, comitê que reúne os secretários de Fazenda, estamos tentando obter estes dados e seis estados já colaboraram. Infelizmente, eles representam somente 20% do necessário para uma amostra representativa nacionalmente. Além disso, informações sobre sexo e idade do falecido, fundamentais para calcular as taxas de mortalidade específicas, são descartadas pelas administrações por não serem relevantes no cálculo do imposto.
Mantido o sigilo fiscal do contribuinte, o acesso a estas informações reduziria o espaço da intuição no debate sobre desigualdade e tributação de patrimônio no Brasil. Um estudo publicado no periódico American Economic Review em 2015 concluiu que os participantes da pesquisa passaram a ter uma opinião favorável sobre taxação de heranças uma vez informados sobre quem de fato paga o imposto –os super-ricos.
Apesar de o baixo nível de confiança no governo restringir o apoio às políticas redistributivas no país, os americanos parecem enxergar no imposto sobre heranças uma boa ferramenta para impedir a perpetuação de níveis extremos de desigualdade. Num país desigual como o Brasil, a discussão sobre o potencial distributivo e arrecadatório –seja de um novo imposto sobre patrimônio ou do redesenho do imposto sobre heranças, deve se dar com base nos dados.
A seguir, algumas propostas que vão nessa direção:
integrar bases com dados sobre os falecidos como: sexo, idade, escolaridade etc.
liberação dos microdados anonimizados das declarações de Imposto de Renda de Pessoa Física e
criação de um questionário adicional sobre patrimônio nas pesquisas domiciliares do IBGE.
FOLHA DE S. PAULO