“Centrais e PT só estão preocupados com imposto sindical”, diz Pastore

Para o sociólogo José Pastore, criador da Fipe e da Embrapa, debate sobre reforma trabalhista está calcado em erros e interesses corporativo
Carlos Rydlewski

O sociólogo José Pastore é um dos maiores especialistas brasileiros em legislação trabalhista. Autor de mais de três dezenas de livros, quase todos sobre esse tema, foi professor da Faculdade de Economia e Administração (FEA), da USP. Ali, teve participação decisiva na criação da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), em 1973, um centro de estudos que começou a desbravar os fenômenos econômicos existentes na base na sociedade brasileira.

É provável, porém, que sua maior contribuição para o país tenha sido compor o seleto núcleo de idealizadores de uma das empresas públicas mais relevantes, ou mesmo, mais decisivas para o desenvolvimento do Brasil – a Embrapa, que deu corpo à revolução tanto técnica como tecnológica hoje manifesta nas lavouras nacionais.

Igor Gadelha
Governo Lula pretende alterar reforma trabalhista de forma fatiada

Em entrevista ao Metrópoles, o sociólogo destrincha um dos temas que considera mais importantes no momento: o debate sobre a reforma trabalhista, realizada em 2017, que alterou a legislação que vigorava no país desde 1943. Um assunto que já entrou na linha de tiro do novo governo federal desde a posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Por quê? É o que ele explica a seguir.

Qual a importância da reforma trabalhista de 2017?

As leis trabalhistas foram consolidadas na década de 1940 no Brasil. Eu disse consolidadas. Muitas delas eram anteriores a essa época. Portanto, passados mais de 70 anos, num período em que as relações de trabalho mudaram totalmente, não havia como deixar de fazer a reforma. Ela atualizou as regras. E havia coisas incríveis na lei.

Quais?
Se uma mulher quisesse entrar com uma ação trabalhista, por exemplo, teria de consultar o pai, o marido ou o tutor. Em outro caso, para fazer hora extra, ela tinha de descansar 15 minutos antes. Quando foi criada, essa regra fazia sentido, porque o trabalho era braçal e o descanso prévio era importante para as mulheres. Mas isso tudo mudou e essas coisas permaneceram na legislação até 2017.

Qual foi a mudança mais importante?

A lei antiga foi feita numa época em que as negociações entre empregados e empregadores eram insipientes. Elas nem existiam na prática. O que a nova legislação fez foi facilitar as negociações. Ela deu liberdades às partes para que negociem questões que antes eram rígidas, imutáveis.

Pode dar um exemplo?

A lei mantinha a obrigatoriedade do intervalo de uma hora para o almoço. Se o empregado almoçasse em 15 minutos, tinha de ficar os 45 minutos restantes do lado de fora da catraca da empresa. E se essa pessoa estivesse disposta a almoçar em menos tempo para aproveitar o tempo e fazer um trabalho para a faculdade, ou mesmo, sair mais cedo para buscar o filho na escola? Não podia. A reforma estabeleceu que, se as partes quiserem negociar isso com a participação dos sindicatos, o resultado dessa negociação deve prevalecer sobre a lei. Ou seja, ela dá liberdade às negociações. Essa foi a grande mudança implementada pela reforma.

O que acontece se não houver negociação?

Se as partes não quiserem negociar, ficam mantidas as velhas regras da época da CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas). Isso quer dizer que a garantia legal fica preservada sem retoques. A reforma trabalhista, portanto, criou um sistema engenhoso e criativo de liberdade, com proteção garantia. Quem quiser negociar, negocia e muda. Quem não quiser, usa a CLT do jeito que está e pronto.

Mas os sindicatos perderam força nas últimas décadas. Isso não cria um desequilíbrio nas negociações?

O enfraquecimento dos sindicatos é mundial. Se excluirmos os países escandinavos, eles perderam peso em todos os países. E o sindicato é uma peça importante para a empresa e para a democracia. Como uma companhia com 3 mil funcionários vai negociar um acordo com seus trabalhadores individualmente? Impossível. Portanto, a negociação coletiva é importante. Agora, qual é a melhor vitamina para fortalecer um sindicato? É abrir espaço para a negociação, fomentar esse tipo de discussão. Foi isso o que a reforma fez.

A reforma trabalhista não tratou dos trabalhadores de aplicativos. Não tocou na questão da “uberização” do trabalho. Por quê?

Por dois motivos. Em 2017, quando a nova lei entrou em vigor, a incidência desse tipo de atividade não era tão grande. Ela avançou muito na pandemia. O segundo ponto é mais técnico. Trata-se da heterogeneidade, a falta de padrão, nesse tipo de trabalho. Algumas pessoas entregam alimento de motos, outras dirigem carros, mas também o desenhista, a manicure, o tradutor, o pedreiro, diversos profissionais que estão ligados a plataformas para receber serviços. E esse tipo de trabalho não tem nada a ver com a CLT, que foi o objeto da reforma trabalhista.

Por que não tem a ver?

Como disse, o regime de trabalho dessas pessoas é muito diverso. Alguns atuam por três horas, outros o dia inteiro. Existem aqueles que trabalham no fim de semana e os que ficam uma semana sem trabalhar. Há os que estão conectados a uma plataforma, mas também os que se ligam a diversas ao mesmo tempo. É um mundo em que há descontinuidade no espaço, no tempo, na forma de trabalhar e no tipo de profissão. Como você vai estabelecer uma relação de emprego nesse caso?

Então, o que fazer com esses trabalhadores?

Esse é um tema urgente e o mundo inteiro está à procura de uma forma de levar a proteção a essas pessoas. E isso tem de ser feito porque elas são humanas, envelhecem, sofrem acidentes, as mulheres ficam grávidas.

Se pela CLT não é o caminho, qual pode ser?

Em primeiro lugar, ninguém resolveu de fato esse problema. Para mim, os países que mais avançaram nesse campo estão estabelecendo proteções por meio das leis previdenciárias. Acho que aí está a solução.

Como funcionaria?

Temos de usar a Previdência, que já está meio que voltada para isso. Ela já atende tanto o empregado, como o autônomo, o individual, o facultativo e o voluntário. Essas pessoas estão muito mais próximas do mundo das plataformas do que do emprego tradicional. Se entrarem para a Previdência, terão no mínimo 15 proteções, como aposentadoria por tempo de serviço, idade ou invalidez. Só não terão direito a férias e ao 13º salário. Mas de novo: como você vai calcular esses dois benefícios para quem trabalha para cinco plataformas diferentes? Então, ainda assim há limites, mas menores.

Mas a alternativa da Previdência não levaria à discussão que não pode, que vai sobrar para o governo, que o sistema não aguenta?

Não. E por que o governo deve participar disso? Porque é muito mais barato garantir a proteção do que esperar que essa pessoa caia no colo da assistência social na maior precariedade.

E como a conta é paga?

O mundo está resolvendo essa questão de diversas formas. Um bom exemplo é dado pelos alemães. Na Alemanha, um ator, um profissional que muitas vezes trabalha de forma um tanto errática, é obrigado a se vincular à Previdência. Para ter proteção, ele paga uma parte, o teatro e o governo completam, cada um com um terço, por exemplo. Mas pode ser 50% para o trabalhador e 25% para as demais partes.

E se ele perde o trabalho?

Aí, tem duas alternativas. Uma delas é continuar pagando a parte dele, se puder. Nesse caso, vai manter as proteções, mas serão reduzidas no tempo. Quer dizer, se ficar o resto da carreira assim, vai ter um benefício previdenciário menor. Depois, se voltar a trabalhar, pode retornar ao sistema anterior. Se parar de contribuir e se recuperar mais adiante, tem como recolher um valor adicional para recompor o benefício. Em resumo, esse modelo tem flexibilidade por isso pode ser adotado em um sistema tão complexo como as relações de trabalho com plataformas.

Outro tema, e cada vez mais discutido, é o imposto sindical. Qual a sua posição?

As centrais sindicais e o PT só estão preocupados com isso. Ocorre que a reforma trabalhista não acabou com a contribuição sindical. Ela acabou com a obrigatoriedade do pagamento. A lei diz que o trabalhador que quiser pode contribuir. Se o sindicato quiser descontar a contribuição da folha de pagamentos da empresa, também pode. Basta que o empregado assine um papel autorizando esse débito. As críticas não aconteceram, portanto, pelo fim da cobrança.

E esse assunto deve voltar à tona.

Sim. E os sindicatos arrecadavam R$ 3,8 bilhões por ano com o imposto. A maioria sem fazer absolutamente nada. Usavam esses recursos para fazer campanha contra os parlamentares, que acabaram mudando as regras do jogo. As centrais sindicais e o presidente Lula falam que não vão tentar reativar o velho modelo. Agora, se a proposta girar em torno de uma contribuição voluntária, de fato não vamos voltar ao passado. Se for obrigatória, vamos ter a mesma coisa, mas com outro nome.

Outra crítica comum à reforma foi o estímulo à terceirização. Ela procede?

Não. As centrais sindicais diziam antes da reforma que o Brasil viraria um país de terceirizados. Isso não aconteceu. Há um limite claro para a terceirização nas companhias. Mesmo porque as relações entre uma empresa e os trabalhadores exigem comprometimento e confiança. Não dá para terceirizar tudo. Na verdade, os sindicatos ficaram insatisfeitos por conta de outro motivo.

Qual motivo?

Quando uma metalúrgica, por exemplo, terceiriza determinada atividade, esses profissionais não fazem mais parte da categoria dos metalúrgicos. Eles vão compor outra categoria profissional. Nesse caso, portanto, também não recolhem mais a contribuição para o sindicato antigo. O fato é que, toda vez que a empresa terceiriza parte da mão de obra, algum sindicato perde arrecadação. No fundo, o que existe é uma briga de sindicatos lutando pela maior fatia do bolo de contribuições.

https://www.metropoles.com/negocios/centrais-e-pt-so-estao-preocupados-com-imposto-sindical-diz-pastore

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