*Percival Maricato
Na condição de quem ocupou privilegiado posto de atuação como líder de classe que lida todos os dias com milhões de cidadãos consumidores, quero utilizar este espaço para análise das causas e consequência de fatos que emergem diante da morte violenta de um cidadão negro no Carrefour de Porto Alegre, o sr João Alberto Silveira Freitas. Neste recorte sobre reflexos judiciais e econômicos o que deve ficar bem claro, antes de tudo, é que escolher mal terceirizados pode resultar em extinção da empresa, com gigantescas dívidas sobrando para os sócios.
A morte, causada pela agressão de dois seguranças brancos, mostra o risco que corre qualquer empresa que contrata terceirizados sem levar em conta quem está contratando, quem será enviado pela contratada para prestar serviços.
O Carrefour terá prejuízo material e moral, imensos. Material com a redução de vendas, decorrentes de quebra-quebra, fechamento de portas por vários dias. Podemos citar com dano moral o desgaste da imagem da empresa, de sua marca e conceito. Quanto custará recuperar minimamente a confiança dos consumidores? Há ainda prejuízos financeiros diretos, decorrentes dos danos emergentes citados, menos dinheiro aplicado e reservas. E só na bolsa suas ações caíram mais de 2 bilhões de reais.
O dano é maior por ser empresa que lida diretamente com a população, com consumidores, por ter em cada grande cidade concorrentes e entidades da sociedade civil que passarão a fiscaliza-lo cotidianamente. Leve-se em conta que o Carrefour não é primário, como se diz no direito penal, possuindo histórico negativo.
Valor significativo será calculado para indenização à família do falecido. A perda de ente de uma família é irreparável, mas no mínimo esta tem direito a dano moral, possivelmente meio milhão de reais, mais pensão mensal, algo como ¾ do que ele ganhava, até que completasse 75 anos, idade provável de seu falecimento por causas naturais. É ¾ por supor que o Sr. Freitas gastaria pelo menos ¼ com despesas pessoais. Se ficasse paraplégico ou algo parecido, o Carrefour teria que pagar ainda pelo menos três cuidadores (revezando-se, quiçá mais um nos fins de semana), enquanto ele estivesse vivo, mais gastos com hospitais, remédios, cuidados com recuperação e tantos outros. Muito provavelmente, teria que constituir capital para garantir esses pagamentos, cerca de R$ 10 milhões de reais.
O Carrefour pode e certamente tentará, ante a repercussão do fato, acordo com a família. Esta, informada, não aceitará menos do que o avaliado acima. Se for necessário ação judicial, o desgaste moral será maior, a condenação será elevada, acrescida de honorários, juros de 1% ao mês, correção.
Em ação judicial, o Carrefour pode tentar culpar a empresa de segurança, mas isso, mesmo que seja aceito (pode não ser, pois será julgada à luz do direito do consumidor), dificilmente isentará o supermercado, pois óbvio que contratou mal e fiscalizou o serviço pior ainda. O fato em si já diz o quão despreparados eram os seguranças. Surraram o cidadão por vários minutos, em público e frente às câmeras, até mata-lo. Depois o abandonaram no chão do estacionamento, sem prestar socorro, sem procurar amenizar um mínimo as consequências. O ocorrido tem todos os agravante de ter sido qualificado como crime de racismo. Será mais um fundamento pelo qual a indenização poderá ser agravada e aumentada.
Haverá ainda as inevitáveis perdas com fiscalizações e na reconquista do público. Haja anúncios em jornais, redes sociais, pedidos de desculpas, cursos para funcionários, despesas com contratação de empresas terceirizadas mais eficientes. O Carrrefour terá que ser perfeito, doravante. E tal como a mulher de Cesar, além de ser, parecer perfeito.
O supermercado poderá agir judicialmente contra a empresa de segurança pelo direito de regresso, visando compensar-se do prejuízo. E no caso, não só pelo que for despender com a família, mas também todo seu dano moral e material, tudo que perder e deixar de ganhar. Afinal, se não tem como se isentar perante o consumidor, o Carrefour, se feito um contrato com cuidados mínimos, tem todo o direito de exigir da empresa de segurança competência na prestação de serviços.
A empresa de segurança poderá não sobreviver a tantas indenizações e ao prejuízo moral que ela também irá sofrer; quem doravante irá querer contratá-la, ter em sua empresa um segurança com a marca da mesma no colete? Os sócios poderão perder tudo, com a figura da desconsideração da pessoa jurídica. Ou seja, se empresa não tem como pagar os credores, a família ou o Carrefour, poderão dirigir suas pretensões de indenização contra os sócios.
Para Carrefour e possivelmente para a empresa de segurança valeu um velho ditado: muitas vezes o barato sai carro. O serviço de segurança exige mais profissionalismo, preparo de profissionais muito além do curso de reciclagem, técnico, obrigatório a cada dois anos, os exames psicológicos devem ser bem feitos, e a contratação de pessoas sem vínculo empregatício, é muito comum que se contrate policiais, que há anos não passam nesses exames de adaptação, deve ser evitado ou no mínimo ser circunscrito a certas funções que não gerem vínculo trabalhista e não lidem com públicos diretamente.
Se não se admite que um simples botequim noturno contrate vigilantes sem curso de formação (200 horas, onde se aprende legislação, direitos humanos etc), como aceitar que uma multinacional o faça. Nesse caso, o supermercado terá que responder junto ao Ministério Público.
Em situações mais comuns, a empresa que contrata bem e fiscaliza o serviço, nem sempre responde pela agressão de um segurança. Para tanto é preciso provar que ela teria agido com culpa ou dolo. A participação de uma funcionária com poder para intervir mas que optou em filmar as agressões indicam que algo pode estar fora de controle.
O mesmo não acontece com a empresa de segurança, sua responsabilidade é objetiva, ou seja, existe independente de culpa. Só a grave e injusta provocação da vítima pode isentá-la ou reduzir o prejuízo. Não será o soco que o sr Freitas parece ter dado em um dos seguranças que trabalhava no Carrefour que isentará a empresa ou o supermercado de indenização. Não foi sequer “excesso de legítima defesa”. Há uma imensa desproporção entre a reação da vítima e a dos agressores.
Esse cuidado com contratação de segurança tem que ser observado também com demais terceirizados. Serviços de limpeza, refeições, digitais, facilities, dezenas deles, têm que vir de empresa idôneas, contratados corretamente e assim mesmo têm que haver fiscalização.
Incidentes como o referido acima, com outros contornos ou causas, furtos, incêndios, imprudência ou negligência criminosa, equipamentos de valor quebrados, podem acontecer com o exercício deficiente de qualquer profissão.
Contratações mal feitas acontecem principalmente com o Poder Público, que através de licitações procuram por quem oferece preços mais baratos, e em muitos casos acaba contratando empresas que vão dar mais prejuízo do que economia. É comum o chamado preço inexequível, ou seja, vence a licitação empresa que oferece seus serviços por preço que sequer paga seu custo. E então, quando menos se espera, quebra, ou deixa de cumprir o contrato, seus funcionários cometem barbaridades, obrigando contratações emergenciais a preços elevados.
Estamos falando de um caso que ultrapassou limites de normalidade, agravado pelo racismo. Mas é bom que o empresário perceba o quanto casos de menor repercussão podem acontecer no cotidiano. Dar um carro ou equipamento para um funcionário despreparado saia pelas ruas ou atenda clientes pode levar a catástrofes. Igualmente pode acontecer se ele permite que um funcionário preparado saia com um carro ou equipamento defeituoso. Se ao ultrapassar um sinal vermelho o funcionário que dirige um carro de uma pequena empresa atropela um pedestre com 30 anos que recebe R$ 15 mil por mês onde trabalha, a empresa dona do carro, chamada para responder uma ação de indenização, provavelmente terá que pagar algo como uns R$ 10 mil ou mais por mês por 45 anos à família (até que o atropelado completasse 75 anos).
O sucesso na atividade empresarial exige eterna vigilância.
*Percival Maricato, sócio do Maricato Advogados Associados