O movimento de algumas empresas para elevar a participação de profissionais negros em suas equipes, que ganhou tração no ano passado, deve impulsionar também a preparação do ambiente corporativo após a chegada deles.
Segundo Daniele Mattos, co-fundadora da consultoria Indique uma Preta, a diversidade vai trazer novas formas de pensamento que podem mudar o conceito de inovação.
“O mercado é viciado em aceitar só um tipo de repertório e solução. Quando essas pessoas entram, as empresas precisam atualizar seus referenciais do que é inovador”, diz Mattos, que participou da elaboração da seleção de trainees negros do Magazine Luiza e fechou na semana passada uma nova parceria com a varejista para atuar também na recepção dos contratados.
Como nasceu a iniciativa de vocês? Como um coletivo para denunciar a falta de representatividade de mulheres pretas na indústria criativa, de onde eu e minhas sócias viemos. Sempre trabalhamos em agência publicitária e percebemos que a cultura do ‘quem indica’ era muito forte.
Há cinco anos, criamos a Indique uma Preta para conseguirmos nos articular, indicar umas às outras e fazer networking. Mas cresceu absurdamente. Hoje somos uma comunidade de 7.000 mulheres. E fomos percebendo que isso não era uma especificidade só da indústria criativa, mas de todo o mercado de trabalho.
Começamos a receber uma demanda muito forte por palestras e para indicar mulheres para trabalhar. Fomos nos especializando e decidimos virar uma consultoria de conexões entre a comunidade negra e o mercado de trabalho.
Vocês foram contratadas para participar do projeto de trainees negros do Magazine Luiza, que teve muita repercussão no ano passado. Como foi isso? Eles já tinham tudo estruturado, pensado no conceito e já tinham pessoas pretas na condução do processo, mas tiveram a preocupação de trazer a consultoria preta para contar essa história junto.
Os trainees negros selecionados têm formação muito boa, mas são mais velhos do que a média dos programas de trainees tradicionais, que não abordam a questão racial. Por quê? Na comunidade negra, não é que falte qualificação. O que precisamos é de oportunidade. Quando criamos a Indique uma Preta, há cinco anos, percebemos que as meninas chegavam nos eventos com portfólios impecáveis de projetos independentes pessoais. Como elas não tinham oportunidades e privilégios dentro das esferas tradicionais, elas se viravam.
O que precisava não era desenvolver a comunidade negra. O que precisava era falar com o mercado de trabalho para ele entender como faz para receber essa comunidade. Isso coloca em xeque a mentira que o racismo nos conta: que falta qualificação, que não se consegue contratar pessoas negras porque elas não têm inglês fluente.
Acho que é por isso que tem essas pessoas mais velhas que são incríveis. Elas precisaram se reinventar, buscar curso fora do país, desenvolver projetos pessoais, abrir suas próprias empresas, como foi o meu caso, para desenvolver os potenciais delas. Só prova o quanto as empresas estão perdendo potencial criativo por não olhar para isso de forma estratégica.
Acho que o Magalu fez um pulo do gato, que incomodou racistas, porque não olhou para isso como uma moeda humanitária. Eles olharam com foco no negócio.
Ainda existe a narrativa de que faltam negros nas chefias das empresas porque há escassez de mão de obra qualificada. Por que isso? Olhando para o Brasil de forma ampla, sim, as pessoas negras estão em situação de vulnerabilidade, as mulheres negras estão na base da pirâmide, mas a gente não é só isso.
Colocar essa narrativa como absoluta sobre todas as pessoas negras no Brasil é reforçar e querer que essa narrativa seja verdade. É querer que esse seja o único lugar possível para nós.
Quando eu falo que eu tenho inglês fluente, que fiz uma faculdade muito boa graças a programas de inclusão de pessoas negras no ensino superior, ou que eu tenho a minha consultoria, é uma narrativa muito destoante. É desconfortável, e não só para pessoas que são deliberadamente racistas.
Imagino que deve bater para algumas pessoas brancas que acreditam que estão perdendo espaço. A nossa demanda enquanto comunidade é por oportunidades iguais. A comunidade negra já luta por direitos há muitos anos. Muitos já foram conquistados. Cota em universidades é um deles.
Quando vemos que já existe a política de cotas há anos, percebemos os efeitos disso. Tem pessoas competentes, com ótimos currículos, e que mesmo assim esbarram na entrada no mercado de trabalho. Se é importante ter políticas afirmativas para que as pessoas pretas estudem, é também importante ter políticas para que elas entrem no mercado de trabalho.
Na tentativa das empresas de atrair diversidade, qual é a importância da fase depois da contratação? Não é só contratar. Precisa pensar espaços seguros para que essas pessoas consigam explorar suas potencialidades no máximo, para que elas não tenham a criatividade e a subjetividade cortadas. É preciso ambientá-las e fazer educação sobre viés inconsciente.
O mercado é muito viciado em aceitar só um tipo de repertório e solução. Quando essas pessoas entram, as empresas precisam atualizar seus referenciais do que é inovador. É estar com os ouvidos atentos para o que elas vão trazer à mesa.
Daniele Mattos, 27
Graduada em relações públicas pela Belas Artes. Estuda cultura e comunicação estratégica organizacional na USP. Fundou a Indique uma Preta ao lado das sócias Amanda Abreu e Verônica Dudiman
FOLHA DE S. PAULO