Os profissionais que ingressaram no mercado financeiro nos últimos 20 anos não conviveram com episódios inflacionários no mundo desenvolvido. Muitos até chegaram a acreditar que a inflação estaria morta ou pelo menos fora de moda, assim como as calças boca de sino ou as discotecas, símbolos dos anos 70 do século passado. Mas é preciso cuidado. Como na moda, o vaivém também ocorre em economia.
Os dois choques do petróleo, em 1973 e 1979, levaram a variação anual do índice de custo de vida norte-americana (CPI) para patamares de dois dígitos, com rápido e intenso repasse para os demais preços da economia. Foi preciso um draconiano choque de juros, promovido por Paul Volcker, que presidia o Fed (o banco central dos Estados Unidos), desde outubro de 1979, para debelar a situação. Mais uma vez ficou claro que, quando instigada, a inflação reage, e o remédio monetário, por mais amargo que seja, torna-se inevitável.
No entanto, desde o início deste milênio, principalmente depois da grande crise financeira de 2008, os bancos centrais dos países desenvolvidos lutam para evitar a deflação, ou a inflação muito baixa. Isso pode estar mudando.
A proposta orçamentária de Joe Biden prevê déficits que podem chegar a 16,7% do PIB, neste ano fiscal (até o final de setembro), e a 7,8% no próximo exercício, com a política monetária ainda em fase expansionista. Se levarmos em conta que a recuperação da recessão causada pela covid-19 está sendo uma das mais rápidas e intensas já registradas na história dos ciclos econômicos norte-americanos, esses estímulos podem ser demasiados.
Mas há também mudanças estruturais, que, embora seja difícil prever quando começarão a pressionar a evolução dos preços nos países desenvolvidos, certamente já não estão mais ajudando a manter as taxas de inflação historicamente baixas. O excelente livro The Great Demographic Reversal, de Charles Goodhart, ex-membro do Comitê de Política Monetária do Banco Central da Inglaterra, alerta para essa questão.
Para Goodhart e coautores, dois fatores foram determinantes para a recente era de inflação muita baixa: a) o grande aumento, propiciado pelo baby boom do pós-guerra, da população em idade ativa (15 a 64 anos), verificado nas economias globalizadas (países de alta renda, mais a China), intensificado a partir dos anos 90 com a integração da antiga União Soviética e da própria China no comércio internacional; e b) o aprofundamento da globalização, que levou à exportação de deflação, da Ásia e do Leste Europeu, na forma de mão de obra barata, para o resto do mundo.
Essas duas situações estão se invertendo. A população ativa nas economias globalizadas começará a cair a partir de 2021, e a taxa de dependência, ou seja, a relação entre os inativos e os habitantes totais, que atingiu seu mínimo em 2010 (42%), já começou a se elevar rapidamente, devendo alcançar 60%, em 2035. A globalização, por sua vez, tende a se reduzir gradualmente, menos pela xenofobia e mais por razões estratégicas. Isso deverá provocar pressões nos custos salariais e na inflação, segundo Goodhart. Claro, os bancos centrais dos países desenvolvidos terão que reagir.
Se esse cenário se concretizar, haverá efeitos nocivos para o Brasil. No curto prazo, nem todos os aumentos de preços de insumos já foram incorporados no varejo. Se os juros internacionais subirem além do esperado, a recente apreciação cambial poderá ser revertida e isso trará novos desafios para as políticas monetária e fiscal.
Estou tranquilo quanto à determinação do Banco Central em manter a inflação dentro das metas. Mas a gestão da política fiscal não inspira confiança. E isso poderá piorar se Bolsonaro tentar comprar sua reeleição desorganizando ainda mais as contas públicas.
*ECONOMISTA E DIRETOR-PRESIDENTE DA MCM CONSULTORES. FOI CONSULTOR DO BANCO MUNDIAL, SUBSECRETÁRIO DO TESOURO NACIONAL E CHEFE DA ASSESSORIA ECONÔMICA DO MINISTÉRIO DA FAZENDA
O ESTADO DE S. PAULO