As contratações de estagiários autodeclarados pretos e pardos quase triplicaram no início de 2021. Foram 743 admissões no primeiro trimestre, ante 250 nos primeiros três meses de 2020 – um aumento de 197%, de acordo com a Companhia de Estágios, empresa de seleção de estagiários, trainees e aprendizes. O levantamento foi feito a partir de uma base com 3.347 estudantes negros admitidos entre 2018 e 2020. “Esse indicador tem aumentado ano a ano”, diz Tiago Mavichian, CEO e fundador da Companhia de Estágios. De acordo com o estudo, a convocação de universitários negros subiu 96% entre 2018 e 2019 e 150% de 2018 para 2020.
Uma das principais razões da escalada dos números é o crescimento da quantidade de programas de estágio com metas de diversidade racial. Em 2017, 42% das ações de seleção conduzidas pela Companhia de Estágios tinham essa preocupação. Em 2018, 61%. Em 2019, 80%, e em 2020, 87%. Outra mola propulsora é a queda da exigência dos empregadores em relação às atividades anteriores dos candidatos. “As organizações estão contratando mais jovens sem experiência prévia”, diz Mavichian. Em 2018, apenas 6% dos negros garantiram estágios sem anotações no currículo. No ano passado, esse número alcançou 19% – um salto de 217% em três anos.
É o caso de Yasmin Carneiro Barreto, 20 anos, há dois como estagiária do escritório de advocacia Mattos Filho, um dos maiores do país, com 1,4 mil funcionários. “É a minha primeira experiência profissional”, diz a auxiliar jurídica, no terceiro ano do curso de direito da Universidade Federal Fluminense. Ela integra a equipe de prática de infraestrutura e energia, junto com três sócios da banca. “Auxilio os advogados nas demandas relativas aos clientes desses setores, pesquiso questões regulatórias e elaboro petições, memorandos e minutas”, diz. As atividades ainda incluem revisão de contratos, elaboração de defesas em processos administrativos e auditoria de ativos em operações de fusões e aquisições. “Sempre vi a imagem do negro desassociada do ambiente profissional, o que reforça o racismo na empregabilidade brasileira e contribui para que o ambiente jurídico seja majoritariamente branco e elitizado”, diz Yasmin. “Precisamos que isso mude.” Há dois anos, o Mattos Filho criou o Soma Talentos, um programa para universitários autodeclarados negros que estão no 1º ou 2º ano de direito. Oferece aulas de inglês e “português jurídico”, além de trilhas de capacitação e mentoria com os sócios.
A iniciativa está na terceira edição e recebeu 1.713 inscrições, para oportunidades em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. Dos 33 estudantes que ingressaram nas duas primeiras chamadas, 29 permanecem no escritório. Somente este ano, na terceira convocação, o Soma Talentos acumulou 562 inscrições, encerradas em maio. São dez vagas disponíveis. “Também organizamos um treinamento, antes da contratação e do onboarding, voltado ao letramento racial e vieses inconscientes, para os gestores que acompanharão os jovens”, diz Renata Maiorino, diretora de desenvolvimento humano do Mattos Filho. De acordo com ela, o movimento serve também para encaminhar mais profissionais negros a postos de liderança. “Esse é um dos principais objetivos, além de fomentar ‘role models’ e a diversidade racial.” Entre os atuais sócios, mais de 20% começaram como estagiários. Hoje, o escritório tem uma sócia e uma gerente de recursos humanos autodeclaradas negras. Dos 235 estagiários do quadro atual, 22,5% são pretos ou pardos.
Na multinacional de bens de consumo P&G, dos 103 estagiários do escritório central de São Paulo, 25% se autodeclaram negros. Já nas contratações de iniciantes feitas entre julho de 2020 e junho de 2021, 38% são negros, diz Thatyana Souza, gerente sênior de talentos, equidade e inclusão. No ano passado, a companhia de quatro mil funcionários no Brasil criou um programa de desenvolvimento focado em estudantes negros. O “P&G para Você” inclui 12 meses de bolsa integral de inglês, mentorias com gerentes e treinamentos em “soft skills” (habilidades ligadas ao comportamento). Depois do período de curso, os candidatos fazem um teste de proficiência no idioma e, se aprovados, ingressam em um estágio gerencial, considerado a principal porta de entrada do grupo.
“Precisamos desenvolver um ambiente que inclua”, diz Thatyana. Na opinião da executiva, o inglês fluente é uma das principais barreiras para o ingresso dos jovens. “Como somos uma multinacional, escolhemos investir no idioma antes do dia 1 na empresa, para que o candidato tenha acesso às mesmas oportunidades.” Em três edições, a iniciativa de capacitação recebeu 1.320 inscrições e acaba de ser ampliada. Antes concentrada no escritório paulista, foi expandida para todas as fábricas da marca no Brasil (SP, RJ e AM), com 50 vagas. Em um ano, foram contratados sete participantes para o programa gerencial e outros quatro começarão até julho. Uma nova chamada será aberta no segundo semestre. Thatyana diz que a representatividade de talentos negros e pardos na companhia chega a 32%, sendo que 10% ocupam cadeiras gerenciais.
Na P&G há cinco meses, Bianca do Nascimento Barreto, 21, entrou no estágio gerencial em marketing para a marca Pantene. Estudante do terceiro ano do curso de relações internacionais da Universidade de São Paulo (USP), participa de projetos de ecommerce e do relacionamento com influenciadores. “Dou suporte para qualquer iniciativa da Pantene, como durante o BBB21, quando liderei três envios de itens para a casa e a promoção atrelada a uma prova do líder.” Bianca estabeleceu contato com a P&G em uma feira de recrutamento na USP. Depois disso, ficou de olho nas comunicações de vaga da fabricante. “A oportunidade de ser efetivada como gerente fez a diferença no momento de escolher a companhia”, diz a universitária, em seu primeiro estágio. Na Bayer, a visão de futuro também norteia a entrada de novos funcionários negros. No ano passado, a empresa criou o Liderança Negra, programa de trainees exclusivo para profissionais negros que atraiu mais de 25 mil interessados em um mês. Com 19 vagas em cinco cidades, 16 foram ocupadas por mulheres – os selecionados têm entre 22 e 30 anos.
A ideia é trazer mais inovação para a companhia, diz Patrícia Leung, líder de employer branding, university relations e onboarding na Bayer do Brasil. “Somente com um quadro diverso é possível promover a verdadeira inovação”, afirma. Leia também: dez executivas negras dão mentoria a estudantes mulheres · Os trainees escolhidos começaram na empresa em fevereiro e vão liderar projetos multidisciplinares, trabalhar em contato com as lideranças e aperfeiçoar aspectos técnicos e socioemocionais. A iniciativa foi pensada para ser inclusiva também no formato, eliminando exigências históricas do mercado de trabalho, como o domínio da língua inglesa ou a graduação em determinadas instituições de ensino, explica. “Temos uma história que não garantiu as mesmas oportunidades para as pessoas negras e ações afirmativas ainda precisam ser estruturadas para vencermos desigualdades.”
VALOR ECONÔMICO