A nova Lei de Licitações (nº 14.133/21), sancionada no dia 1º de abril, trouxe importantes avanços na regulamentação tanto do processo licitatório como da execução dos respectivos contratos administrativos. Pelo extenso rol de definições de termos usados na lei é possível notar a melhora em relação à antiga (nº 8.666/93): a nova lei triplicou a quantidade de definições – de 20 incisos na antiga lei (artigo 6º) para 60 na atual (também no artigo 6º). Dentre elas, destacam-se o maior detalhamento do conteúdo do “projeto básico” (inciso XXV), um documento relevantíssimo para o objeto da licitação; e as definições de “sobrepreço” e “superfaturamento” (incisos LVI e LVII, respectivamente), que são conceitos fundamentais para verificação de dano à administração pública e, consequência, de eventual responsabilização (administrativa, civil e criminal) dos agentes (públicos e privados) envolvidos.
Ressaltam-se, ainda, as salutares inovações trazidas pela nova lei, a exemplo do conceito de matriz de risco (artigos 6º, XXVII, 22 e 103), que confere maior segurança jurídica às partes ao definir os riscos alocados a cada um e suas consequências; dos novos critérios (“maior retorno econômico” e “maior desconto”) para a concorrência (artigo 6º, XXXVIII), que podem possibilitar maior economia no gasto público; da nova modalidade de licitação denominada “diálogo competitivo” (artigo 6º, XLII), a gerar maior eficiência e competitividade; e do seguro-garantia (artigos 6º, LIV, e 97 a 102), que representa nova opção de garantia ao contratado (além das usuais caução e fiança bancária) e assegura ao Estado a completa execução do contrato.
Assim, mesmo por esse panorama geral, percebe-se que a nova lei representa um importante avanço, possibilitando maior competividade nas licitações e, sobretudo, conferindo maior segurança jurídica a todo o processo licitatório e a seus participantes – pessoas físicas e jurídicas, licitantes e contratados; e agentes públicos, na representação das contratantes. Nesse contexto, chamam atenção as alterações penais trazidas pela nova lei. Criou-se um novo crime, de “omissão grave de dado ou de informação por projetista” (artigo 337-O do Código Penal), e, o mais impactante, aumentaram-se as penas a eles cominadas – veja-se, por exemplo, que o crime de “frustração do caráter competitivo da licitação” teve sua pena dobrada e passou de dois a quatro anos de detenção (artigo 90 da Lei nº 8.666/93) para quatro a oito anos de reclusão (artigo 337-F do Código Penal).
Com esse aumento de pena, a nova lei dificulta uma possível negociação do acusado com o Ministério Público, já que impossibilita a celebração do “acordo de não persecução penal”, que é cabível para os crimes com pena mínima inferior a quatro anos – sendo que quatro dos novos crimes licitatórios possuem justamente a pena mínima de quatro anos. Essa alteração legislativa vai na contramão da expansão da solução negocial no direito penal e acaba por dificultar a defesa do acusado, na medida em que ele terá uma opção a menos: ou terá que efetivamente se defender em um processo criminal, ou, se quiser optar pela via negocial, terá como único caminho a colaboração processual.
Se, para alguns (sobretudo para o legislador), o recrudescimento penal é visto como um “avanço”, a realidade nos mostra que o aumento das sanções penais não é a solução dos problemas – e, especificamente aqui, não será um instrumento eficiente para coibir a prática de ilícitos em licitações. O sistema de justiça criminal é caro e sobrecarregado, de modo que uma sanção penal a eventuais ilícitos cometidos nas licitações não representará a melhor resposta estatal a evitar novos ilícitos e propiciar um melhor ambiente de competição e eficiência do gasto público.
Mais que isso, a maior severidade das sanções penais pode gerar o efeito contrário do que se espera das salutares inovações administrativas: maior participação de licitantes e maior competividade. Isso porque, com tamanha (e desproporcional) responsabilização criminal, é possível que os avanços não se concretizem, ao menos na medida esperada. A desproporcional fixação de pena pode não servir como critério de prevenção geral dos crimes, mas de afugentar a competição. E isso pode retardar e dificultar o andamento do processo licitatório e com isso diminuir o interesse de contratantes e contratados em participar de licitações públicas, direcionando a prestação de serviços ao mercado privado. Exemplo da desproporção na pena mínima é, por exemplo, a comparação com crimes graves como peculato e mesmo corrupção, pois ambos têm o patamar mínimo de dois anos de reclusão, metade do que agora se previu na nova lei de licitações. O tamanho mínimo da pena não é, decididamente, razoável.
Não se está aqui a sustentar a ineficácia total da sanção penal, mas sim o seu uso racional e, sobretudo, proporcional à conduta que se quer criminalizar. O ambiente licitatório sem dúvida melhorará com os incrementos da nova lei – e tomara que esse seja um incentivo (“carrot”) para a melhora de todo o sistema licitatório, tanto para os agentes públicos como para os privados. Contudo, com essa desproporcional responsabilização penal, sobretudo pelo desarrazoado aumento de penas (“stick”), os tão esperados avanços podem não se concretizar na medida esperada, justamente pelo receio que esse “porrete” incutirá nos sujeitos participantes do processo licitatório. A decisão pública do legislativo é, por um lado, eficiente e inteligente. Mas, por outro, é irresponsável e potencialmente contraproducente aos fins esperados. Na difícil equação a se buscar em leis que contemplem interesses econômicos e imponham comportamentos sociais, como essa, o Direito Penal e a sanção irrazoável que se nota corre o risco de ser o pêndulo do desequilíbrio.
Renato Stanziola Vieira e Fernando Gardinali são advogados criminalistas e sócios de Kehdi & Vieira Advogados
VALOR ECONÔMICO