Reforma administrativa não pode constitucionalizar imoralidades do serviço público (Ana Carla Abrão)

Defendo uma reforma administrativa ampla e justa há cinco anos. Defendo-a com veemência e convicção por entender que não se conseguirá melhorar a qualidade dos serviços básicos de educação, saúde e segurança sem uma completa revisão da atual estrutura de carreiras no setor público brasileiro. Assim como, sem ela, não se conseguirá aumentar a produtividade do setor público nem tampouco avançar na solução do conflito distributivo que vivemos hoje, cujo resultado tem sido sempre o de dar mais a quem mais tem do já combalido Orçamento público brasileiro.

Não acredito no real enfrentamento ao nosso maior problema, a cruel desigualdade social, sem um Estado eficiente e voltado ao cidadão. Afinal, não haverá mobilidade social onde esse Estado perpetua as diferenças ao não gerar oportunidades. Assim continuará a ser enquanto não houver uma reforma profunda no seu modelo de funcionamento. A reforma administrativa que eu defendo é uma que reavive os mecanismos de gestão de pessoas no serviço público e redefina a distribuição dos recursos com vistas a melhorar os resultados da ação do Estado, a saber, a qualidade na provisão dos serviços públicos básicos.

Como vocal defensora da reforma administrativa eu deveria estar, portanto, otimista ao ler as declarações do presidente Arthur Lira, dizendo que finalmente a reforma avançará na Câmara de Deputados. Pois não estou. Ao contrário, a tomar por base as últimas decisões do Congresso, temo que o que está por vir seja muito pior do que, como sabemos, já é péssimo.

Conforme apresentado em uma proposta de Projeto de Lei Complementar (PLC) que formulamos Arminio Fraga, Carlos Ari Sundfeld e eu, a reforma administrativa deveria partir de uma ampla revisão das atuais leis de carreiras da administração pública. Baseado nos conceitos fundamentais de eficiência, meritocracia e justiça, o PLC proposto visa a identificar – e eliminar – os dispositivos que vão contra esses conceitos nas diversas leis que regem as milhares de carreiras do serviço público.

Isso passa, necessariamente, pela implantação de um modelo de avaliação periódica de desempenho, inclusive com adoção de curva forçada (avaliação relativa). Da mesma forma, é necessário garantir avanços infralegais, como a regulamentação da demissão de servidores por baixo desempenho, assim como a tipificação de falta grave, permitindo o afastamento tempestivo de servidores corruptos ou que cometam outros delitos graves. Paralelamente, a racionalização no número de carreiras, consolidando-as em grandes blocos de carreiras meio, finalísticas e de Estado, nos levaria a uma estrutura mais organizada e menos fragmentada, abrindo caminho para que, no futuro, se fizesse uma revisão da atual amplitude da estabilidade funcional. Ou seja, partiríamos do que está à mão, organizando a enorme confusão em que se transformou o Regime Jurídico Único para aí então rediscuti-lo.

Mas essa profunda e cuidadosa discussão – acompanhada de uma coordenação federal que permitisse que o mesmo fosse feito a nível subnacional – teria a função de reorganizar as estruturas da máquina pública e também de apresentar à sociedade o vínculo entre as atuais distorções do Estado e as mazelas cotidianas do nosso País. Da mesma forma, se daria aos servidores a oportunidade de participar dos avanços, antevendo os impactos positivos para a ampla maioria das necessárias mudanças. Também ao Judiciário – grande sócio nas atuais ineficiências – se permitiria entender (e quiçá encampar) a importância das alterações propostas. Mas isso não se faz de forma açodada e muito menos começando do final (a estabilidade) e garantindo mais um pedaço do céu para alguns eleitos (ou eleitores?), conforme já sinalizou o relator em matéria de Camila Turtelli e Adriana Fernandes publicada pelo Estadão. Não fosse esse um governo desavergonhosamente corporativista poderíamos acreditar que seria possível corrigir erros e omissões. Não estivesse nosso Congresso dominado pelo Centrão e pela primazia dos seus interesses individuais – hoje de braços dados com um governo cada vez mais fraco e mais populista – poderíamos transformar com discussão, transparência e zelo, esse projeto na semente de uma reforma administrativa correta e justa. Mas, no atual contexto, não me animo.

A se repetir o que assistimos recentemente com o Orçamento e com o teto de gastos, uma reforma administrativa estrutural será enterrada e em seu lugar entrará a constitucionalização de imoralidades e práticas que hoje são apenas maus hábitos. Embaralha-se assim o jogo, cria-se uma barreira política (e legal) à sua aplicação aos atuais servidores, eliminam-se os espaços para se avançar no que já está à mão e tira-se da pauta aquela que é a mais importante e complexa reforma estrutural brasileira.

*ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN. O ARTIGO REFLETE EXCLUSIVAMENTE A OPINIÃO DA COLUNISTA

O ESTADO DE S. PAULO

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