O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) entregou ao Congresso as diretrizes, metas e prioridades para o Orçamento de 2022 sem apresentar um plano ligado à Covid-19 e efeitos no próximo ano ou cálculos sobre o impacto da pandemia nas contas públicas.
Esse é a terceira vez seguida desde a chegada da Covid ao país que o governo formula uma peça orçamentária sem previsões de efeitos sobre os números.
Esse tipo de omissão foi notado recentemente por técnicos do Congresso e questionado pelo TCU (Tribunal de Contas da União).
A proposta de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), que guia a formulação do Orçamento do ano seguinte, foi apresentada dessa forma pelo governo enquanto especialistas alertam para o risco de a doença e seus efeitos continuarem no ano que vem.
Margareth Dalcolmo, pneumologista e pesquisadora da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), afirma que a crise sanitária vai continuar em 2022. “Não há dúvida de que a epidemia não terá se extinguido em 2022”, afirmou à Folha.
“A se manter esse ritmo de vacinação tão lento e um patamar de transmissão ainda muito alto, sobretudo contaminando camadas da população mais jovem e falta de medidas restritivas, não tenho ilusão de que teremos a epidemia controlada em 2022”, disse.
O alerta é feito também pela OMS (Organização Mundial da Saúde). Michael Ryan, diretor-executivo da entidade, afirmou em março que é “prematuro e irrealista” falar em fim da pandemia em 2021.
O governo citou a Covid na proposta de LDO apenas para relembrar efeitos e medidas dos anos anteriores e para mencionar certos riscos, como a possível deterioração fiscal dos estados e a diminuição do colchão da dívida pública —embora sem quantificar os possíveis impactos.
“O PLDO [projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias] 2022 não aborda, de forma separada, os riscos que podem afetar receitas, despesas e dívida pública em função dos efeitos da Covid-19”, afirmaram servidores das comissões de Orçamento de Câmara e Senado, em relatório conjunto.
“Apesar da expectativa do Poder Executivo de um crescimento do PIB em 3,2% neste ano e sua projeção de 2,5% para 2022, a pandemia continua se alastrando em 2021, aumentando as incertezas sobre o cenário das finanças públicas em 2022”, afirmou o documento.
As omissões do governo em relação à Covid no rito orçamentário viraram alvo de análise também de Benjamin Zymler, ministro do TCU.
Zymler apresentou relatório neste mês apontando a ausência de recursos para a Covid no Orçamento de 2021 —recém-sancionado por Bolsonaro— mesmo após constatado o agravamento da pandemia neste ano. Isso demandou discussões para criar brechas e liberar despesas fora das regras fiscais.
Zymler vê a situação como resultado da falta de planejamento do governo para enfrentar a crise. “Possivelmente, como bem salientou a unidade técnica, a razão [para a falta de previsões orçamentárias] é que o Ministério da Saúde vem atuando de forma reativa e não planejada”, afirmou Zymler em relatório.
“A SecexSaúde [unidade do TCU] está acompanhando as ações do Ministério da Saúde desde o mês de março de 2020 e nunca conseguiu acesso a planos ou documentos afins que identifiquem e formalizem claramente a estratégia de enfrentamento à crise e sua operacionalização pelo Ministério da Saúde”, continou o ministro.
Zymler demandou do governo um planejamento orçamentário para a Covid em 2021 considerando testes, leitos de UTI, medicamentos e outras despesas relacionadas. O julgamento foi suspenso após um pedido de vistas no tribunal.
Sem serem contempladas no Orçamento, medidas na área econômica foram interrompidas na virada do ano. O principal exemplo é o auxílio emergencial, que ficou sem respaldo legal e deixou de ser pago até o começo de abril.
O ministro Paulo Guedes (Economia) chegou a discutir no ano passado a revisão de outros gastos sociais para criar no Orçamento um programa social que substituiria o auxílio emergencial e seria mais robusto que o Bolsa Família —o Renda Brasil. Mas Bolsonaro barrou a iniciativa.
O país ficou sem novo programa e sem o auxílio enquanto a Covid avançava pelo país. As mortes diárias pela doença subiram de 793 por dia na primeira semana do ano para 2.752 por dia na primeira semana de abril.
Os pagamentos à população só recomeçaram após governo e Congresso incluírem na PEC (proposta de emenda à Constituição) Emergencial a suspensão das regras fiscais para R$ 44 bilhões do programa.
A proposta de LDO do governo também não incluiu a pandemia no grupo de despesas que poderão ser executadas mesmo com um eventual atraso no Orçamento em 2022, elevando os riscos de entrave de recursos para a crise sanitária no início do ano.
O tratamento especial, por outro lado, foi dado a obras em rodovias —que, pela proposta, poderão ser executadas livremente em 2022 mesmo sem os números aprovados e sancionados.
Procurado, o Ministério da Economia argumenta que, nesse trecho, a proposta preservou a blindagem para o mínimo constitucional da saúde, como em anos anteriores. Mas tais recursos não têm sido suficientes para enfrentar a Covid.
A pasta afirmou em nota que, em caso de necessidade, o governo pode adotar os mecanismos previstos na PEC Emergencial —texto que prevê o estado de calamidade pública, que Guedes não quis acionar neste ano por considerá-la um cheque em branco para despesas.
Especialistas ponderam que a lei não obriga a apresentação de medidas na LDO, mas que ignorar a Covid tem reforçado o caráter ficcional dado às peças orçamentárias nos últimos anos e mostrado falta de planejamento de longo prazo por parte do governo.
“A questão é planejar onde queremos chegar. A gente não vê nada disso, o que dificulta inclusive a construção de cenários para a economia brasileira por parte do setor privado. Não tem nenhum tipo de planejamento”, afirmou Bráulio Borges, pesquisador-associado da FGV (Fundação Getulio Vargas) e economista-sênior da LCA.
Segundo Felipe Salto, diretor-executivo da IFI (Instituição Fiscal Independente, do Senado), o governo ainda pode prever ações para a Covid no Orçamento de 2022.
O prazo para isso (agosto), no entanto, é curto e propostas que respaldam as mudanças tomam tempo para discussão.
“O que se espera é que não se repitam os mesmos erros do ano passado. Em agosto e setembro de 2020, poderia ter sido discutida [por exemplo] uma reserva no Orçamento para a pandemia neste ano”, afirmou. “Mas o tempo foi gasto para discutir emendas”, disse.
FOLHA DE S. PAULO