Se 41% dos brasileiros já relatavam sintomas como ansiedade, insônia ou depressão por consequência da pandemia da covid-19 em março de 2020, hoje mais da metade da população (53%) afirma que seu bem-estar mental piorou no último ano. De acordo com uma pesquisa do Instituto Ipsos encomendada pelo Fórum Econômico Mundial para medir a piora no quadro de saúde mental em 30 países, o Brasil ocupa o quarto lugar do ranking, superado apenas por Itália (54%), Hungria (56%), Chile (56%) e Turquia (61%).
A corrida das empresas foi imediata para oferecer apoio e ferramentas que ajudem os colaboradores a manter a cabeça em dia. As lideranças também tiveram que abraçar a causa e se aproximar ainda mais do time – afinal, as pessoas precisam sentir (e ver) que estão todas no mesmo barco. E daí a revelação: estão todas no mesmo barco – e no mesmo divã.
Os CEOs e profissionais que ocupam cargos estratégicos de liderança, muitas vezes vistos como inabaláveis, também sofrem com angústia, ansiedade, depressão, perdas e incertezas. A diferença é que, enquanto isso, precisam tomar decisões que podem afetar toda uma rede de pessoas e negócios, além do próprio cargo.
Segundo Ronaldo Ramos, ex-country head da Rio Tinto Brasil e fundador do CEOlab (hub de mentores que acompanha profissionais de companhias como Gerdau, Usiminas e Natura), os C-levels tiveram que esquecer a ideia de fazer gestão de crise para fazer gestão “na crise”.
“É uma contínua adaptabilidade e reformulação de processos”, diz. “Agora a gente lida com um tipo diferente de crise, em que você não sabe de onde vem a bomba, então o medo é muito presente”, ele enfatiza.
Ramos explica que o CEO se sente isolado pela responsabilidade de tomar as decisões. “O risco do erro é maior”, ele afirma, fazendo um paralelo com o jogador de futebol. “Se faz gol, a torcida aplaude, mas se não faz, é vaiado.”
Apesar de hoje existir uma cultura organizacional que permite o erro, o especialista diz que há limites. “Precisa aprender a errar rápido e pequeno porque as decisões precisam ser tomadas e não dá para pestanejar”, alerta. “É hora de segurar o ego e confiar na capacidade de aprender colaborativamente para formular o problema do jeito certo porque a gente tende a aplicar soluções conhecidas a problemas desconhecidos.”
A fala vem do alto de muita experiência. Ramos era executivo de mineração na época das tragédias do rompimento das barragens em Mariana e Brumadinho, onde a Rio Tinto também atuava. “Aquilo devastou minhas saúdes emocional e mental, eu simplesmente não conseguia mais dormir”, lembra. “No estresse crônico, a pessoa perde o raciocínio, então precisa promover um espaço para a vulnerabilidade.”
Ele acredita que a ideia de ligar a figura do CEO à imagem de super herói não dá certo. “A primeira recomendação para não entrar em parafuso é que não adianta querer planejar lá na frente”, sentencia. “A preocupação agora é nadar até a próxima boia.”
Convicção em meio ao caos
Quando a pandemia bateu à porta, o caos tomou conta da vida do administrador de empresas Raphael Mattos, CEO e fundador da rede de microfranquias pernambucana Premiapão. Com quatro filhas pequenas, ele descreve a rotina do último ano como um cenário de guerra. “Me pergunto qual é o limite do ser humano, mas mãe e pai realmente têm superpoderes”, brinca.
Para ele, o momento mais difícil foi no primeiro lockdown. Mattos fala que o ambiente físico da empresa, inspirado no modelo do Google, tinha um papel importante no dia a dia do time. “Foi muito duro mandar todo mundo para o home office porque eu sabia que as pessoas não teriam esse mesmo ambiente em casa”, diz.
Outro desafio foi bater o pé para não demitir ninguém. “No começo tomamos um prejuízo danado e eu fiquei muito abalado, com a certeza de que iria falir em 6 meses, mas no final deu certo e hoje nosso faturamento é bem maior do que antes da pandemia”, revela.
Mattos afirma que ter um sócio para compartilhar riscos e ansiedades foi fundamental no processo, tornando as decisões mais leves. A transparência no relacionamento com colaboradores e franqueados também jogou a favor. “Prezo poder deitar a cabeça no travesseiro e dormir”, diz ele. “Isso é impossível quando você se relaciona na base dos conflitos, da inimizade e da intolerância.”
No meio do caos, o CEO fala que outros fatores serviram como fonte de descompressão, como desligar do celular e do mundo para ficar com as filhas e praticar esporte, coisa de que nunca abriu mão.
Luto, depressão e descobertas
O diretor de assuntos corporativos e comunicação da multinacional JTI no Brasil, Flavio Goulart, tinha se mudado para São Paulo com a família um mês antes da pandemia. O processo não foi fácil quando ficaram trancados em casa.
“Eu estava acostumado a passar boa parte do tempo em aviões. Parar com isso tudo mexeu muito comigo e com minhas equipes no Rio Grande do Sul, em Brasília, em Genebra”, lembra. “Como ficariam todos sem a gente estar próximo, sabe? Para quem está acostumado com o olho no olho, isso é muito doloroso.”
Goulart confidencia que a gota d’água, porém, foi em maio do ano passado, quando perdeu a mãe, que vivia no Recife. “Não pude me despedir dela. Foi muito desestruturador.” Foi nesse momento que passou a ter sintomas efetivos de ansiedade e depressão. De pronto, procurou o terapeuta que o acompanhava no Rio Grande do Sul, que o medicou e passou a fazer atendimentos online.
A empresa, que tem um programa de suporte psicológico, financeiro e jurídico para os colaboradores (Programa Amparo), também teve um papel importante no processo de luto. “Todos, do meu chefe imediato à VP sênior em Genebra, me ligaram e falaram para eu parar de trabalhar e abrir espaço para lidar com o peso da perda”, conta.
Goulart, no entanto, quis continuar a trabalhar – e o fato de ele sempre ter empoderado e sido próximo da equipe ajudou nos momentos difíceis. “A gente compartilha tudo, inclusive decisões”, afirma. “Essa troca de conhecimento mútuo faz você viver uma relação diferente, que traz o conforto emocional de saber que você não está só.”
O executivo revela ainda que, muitas vezes descontada na comida, a ansiedade também desequilibrou a balança e voltar a pedalar está ajudando a regular essa parte. “Assim que teve a flexibilização, comecei finalmente a conhecer a cidade e descobri a ciclovia da Marginal Pinheiros”, ele conta. “Jamais imaginei que São Paulo poderia ter vida na beira do rio de uma forma tão intensa, com aves e mais aves, capivaras, tudo.”
Reconhecer vulnerabilidades
Para Renata Rivetti, fundadora e diretora da Reconnect – Happiness at Work, especializada em felicidade no trabalho, o CEO precisa ter autoconhecimento para perceber o que está sentindo e se abrir. Reconhecer sua vulnerabilidade e manter uma comunicação transparente mostra que ele também é um ser humano com fragilidades, segundo ela. “Porque ninguém pergunta”, observa. “É muito esperado da figura dos CEOs esse papel de super herói.”
A especialista ressalta que é essencial ter uma equipe de confiança para compartilhar as responsabilidades – e a pandemia trouxe a oportunidade inclusive para aqueles líderes de perfil mais autoritário e distante do time. “A liderança ficou muito exposta e começou a perceber os próprios gaps”, afirma Rivetti. “É entender que, se eu estiver mal e não trabalhar isso, a equipe vai ser contagiada.”
Noites bem dormidas
Outra que defende firmemente as medidas de aproximação com o time como principal alicerce para que o líder não se veja solitário é a fonoaudióloga Ana Alvarez, que estuda comunicação sob o guarda-chuva da neurociência e da neuropsicologia. Ela diz que formar a base do relacionamento tem que ser o primeiro trabalho do CEO. “O que manda nesse momento é a união”, declara. “Sem proximidade, zero confiança.”
Outra questão chave apontada pela médica é a comunicação intrapessoal do CEO, também chamada de self talk ou diálogo interno. “A maneira como eu me vejo e me sinto vai determinar como resolvo os desafios do trabalho”, ela explica. “Isso inclui falar sempre no positivo, com verbos de ação, porque se você pensa no que não pode fazer, está deixando de pensar no que pode fazer.”
Entre as dicas para manter a mente sã, ela menciona os exercícios físicos, que ativam os neurotransmissores responsáveis pelo bem-estar, sono de qualidade e a necessidade de fazer pausas durante o dia.
“Quem não dorme direito toma más decisões e age mais por impulso no dia seguinte”, lembra. “Ao longo do dia também precisa parar e, de preferência, ir até a janela e olhar para o céu. A ideia de espaço aberto conduz a amplitude de opções.”
O ESTADO DE S. PAULO