Além das crescentes pressões de servidores pelo adiamento do Censo Demográfico, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) enfrenta agora a perspectiva de um corte no orçamento que inviabiliza a realização do levantamento censitário em 2021. O censo deveria ter ido a campo em 2020, mas foi adiado por causa da pandemia de covid-19. O órgão trabalhava para dar início à coleta, que visitaria todos os cerca de 71 milhões de lares brasileiros, a partir de agosto deste ano.
De R$ 2 bilhões programados pelo Executivo, o orçamento do Censo Demográfico ficará em apenas R$ 240,7 milhões este ano, de acordo com o relatório do senador Márcio Bittar (MDB-AC). Desse total, R$ 50 milhões ainda ficarão “presos” ao descumprimento da regra de ouro. Para destravar essa parcela, o governo poderá fazer um remanejamento interno antes da aprovação do Orçamento. Depois disso, a execução dependerá da aprovação de outro projeto de lei pelos parlamentares.
Quando ainda era preparado, o Censo Demográfico foi orçado pela equipe técnica do IBGE em mais de R$ 3 bilhões, mas a presidente do órgão, Susana Cordeiro Guerra, anunciou em 2019 que faria o levantamento com R$ 2,3 bilhões. Em meio às restrições orçamentárias, o órgão decidiu que o questionário básico do Censo seria reduzido de 37 perguntas previstas na versão piloto para 26.
O questionário mais completo, que é aplicado numa amostra que equivale a 10% dos domicílios, encolheu de 112 para 77 perguntas. Com o adiamento de 2020 para 2021, o governo federal enxugou ainda mais o valor destinado ao censo no orçamento deste ano enviado ao congresso.
O montante previsto no relatório poderá ser alterado até a votação do Orçamento, programa para ocorrer na Comissão Mista de Orçamento (CMO) ainda nesta semana. Com esse e outros cortes, o relator aumentou a previsão de recursos para emendas parlamentares, aquelas indicadas por deputados e senadores para seus redutos eleitorais. A redução causou reação de alguns congressistas, que querem apresentar um destaque e recompor o orçamento do censo na votação do projeto.
O deputado Felipe Carreras (PSB-PE), relator setorial do Orçamento do Ministério da Economia neste ano, afirmou que o corte ameaça a distribuição de vacinas da covid-19 por impedir uma atualização nos dados da população. “O censo é que baliza os investimentos do governo federal no SUS, os repasses aos Estados e municípios e a própria estatística de distribuição de vacinas. O corte feito é para acabar com o censo mais importante do século e não ter neste ano novamente”, afirmou o parlamentar ao Broadcast Político.
Segundo o IBGE, o corte orçamentário proposto pelo relator “inviabilizaria a operação”. “O IBGE conta com o apoio da Comissão Mista de Orçamento na próxima votação para que esse cenário seja revertido”, afirmou o órgão, em nota à imprensa.
Após a notícia sobre o corte orçamentário, um grupo de ex-presidentes do IBGE divulgou um manifesto em defesa da realização do censo em 2021. “A expectativa é que, em agosto, o Brasil já tenha saído ou esteja saindo da epidemia da covid, e o IBGE vem se preparando para realizar o trabalho fazendo uso de protocolos estritos de proteção sanitária de entrevistadores e entrevistados”, defende a carta.
O documento é assinado por Edmar Bacha, Eduardo Nunes, Eduardo Augusto Guimarães, Edson Nunes, Eurico Borba, Sérgio Besserman, Simon Schwartzman e Silvio Minciotti. “Como ex-presidentes do IBGE, instamos aos senhores Senadores e Deputados, membros da Comissão Mista do Orçamento, que preservem os recursos do censo e não deixem o país às cegas”, diz o texto.
Servidores pedem adiamento do censo
Diante do agravamento da pandemia do novo coronavírus no País, trabalhadores do órgão em dez Estados já demandaram às chefias estaduais e à direção que o levantamento seja transferido para 2022. O movimento começou em fevereiro no Rio Grande do Sul, quando coordenadores de área do Estado ameaçaram uma entrega coletiva de cargos, através de reuniões por videoconferência e em cartas à direção, caso a presidência do órgão mantivesse a o cronograma atual do censo.
Servidores na Bahia, Maranhão, Roraima, Paraná, São Paulo, Paraíba, Goiás, Sergipe e Espírito Santo também encaminharam às chefias estaduais e à direção do IBGE pedidos de adiamento do censo, segundo o sindicato nacional de funcionários do instituto, o Assibge.
Em plenária nacional realizada remotamente pelo sindicato no último fim de semana de fevereiro, os servidores votaram por aderir ao pleito de adiamento do Censo Demográfico para o ano que vem.
“No País, vive-se a pior situação enfrentada desde o início desta emergência sanitária. Hoje, enfrentamos um colapso no sistema de saúde em praticamente todo o território nacional, com leitos hospitalares lotados – além de uma fila de espera enorme para atendimento – e com déficit de profissionais e de recursos para atender às demandas dos enfermos. Como se não bastasse, estão sendo descobertas novas variantes do vírus, mais transmissíveis, aumentando exponencialmente o perigo de infecção da população. Segundo especialistas, o ritmo da vacinação e a disponibilidade insuficiente das doses nos próximos meses também não contribuem para um cenário otimista para este ano, nem mesmo no seu 2º semestre. É cada vez mais evidente que encaramos circunstâncias muito mais difíceis neste ano do que no anterior (2020)”, diz a carta enviada pelos servidores à chefia estadual do IBGE em Goiás.
O sindicato denuncia que servidores do órgão receberam da direção como equipamento de proteção contra a covid-19 apenas máscaras de tecido, que consideram inadequadas para o trabalho de campo.
“O IBGE fez a aquisição das máscaras seguindo estritamente as recomendações da Anvisa”, respondeu o órgão à reportagem.
Segundo a executiva nacional do Assibge, uma pesquisa respondida por 246 coordenadores em 25 Estados mostrou que 82% deles rechaçam a realização do Censo Demográfico em meio à pandemia.
“O Censo Demográfico precisa e deve ser realizado, mas não agora, não em meio à pandemia que marcará esta geração pelos milhares de mortes que já ocorreram e que, infelizmente, ainda vão ocorrer. O IBGE não pode se colocar na posição de potencializador de tal catástrofe”, completa a carta de Goiás, que tem conteúdo semelhante às escritas pelos servidores das demais unidades estaduais.
No início de março, o IBGE teve que suspender a realização de um teste de coleta em campo do Censo Demográfico que faria no município Engenheiro Paulo de Frontin (RJ). A prefeitura local comunicou ao órgão que teria de impor medidas restritivas para combater a disseminação do novo coronavírus na cidade.
O cadastro de domicílios que serão percorridos no censo ainda precisa ser atualizado, o que seria feito presencialmente. Em carta à presidência do IBGE, coordenadores do Cadastro Nacional de Endereços para Fins Estatísticos (CNEFE) informaram que o trabalho em campo representaria um risco à saúde dos trabalhadores e que não seria possível entregar os dados no prazo determinado pela direção do órgão.
“Para o entrevistador entrevistar todo mundo e ir a todos os domicílios, ele precisa saber onde estão todos esses domicílios. Esse cadastro de domicílios só está 30% atualizado, sendo generosos. O IBGE colocou uma portaria dizendo que o pessoal tinha que ir a campo para atualizar esse cadastro agora. Coordenadores do Cnefe do Brasil inteiro disseram que não tem condições de fazer isso neste momento, de atualizar esse cadastro, ir à rua”, disse Dione de Oliveira, dirigente da Assibge.
O IBGE encerrou na semana passada as inscrições de um processo seletivo para preencher 204.307 vagas temporárias de recenseadores e agentes censitários para trabalhar na organização e na coleta do Censo Demográfico 2021. O concurso aberto em 2020 foi cancelado e o dinheiro das inscrições, devolvido.
Os contratados no novo processo seletivo visitariam todos os lares brasileiros entre agosto e outubro deste ano, nos 5.570 municípios do País. O IBGE esperava que mais de 2 milhões de pessoas se inscrevessem no processo seletivo, que tem provas objetivas presenciais marcadas para o dia 18 de abril para as vagas de agentes censitários e 25 de abril para os recenseadores.
Risco de coleta de informações distorcidas
A realização do Censo Demográfico este ano, em meio à pandemia do novo coronavírus, pode coletar informações distorcidas, com potencial para prejudicar políticas públicas que se baseiam nos dados do levantamento censitário, como o rateio do Fundo de Participação dos Estados e Municípios, alerta Roberto Olinto, ex-presidente do IBGE, que atua hoje como pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV).
Para Olinto, o IBGE deveria se preocupar em realizar um censo com a máxima qualidade. Ele lembra que, se o órgão adiou a coleta em 2020 porque não havia condições de levar o levantamento a campo no meio da pandemia, não deveria insistir em fazê-lo agora, num momento em que a crise sanitária está ainda mais grave.
“Fundamental é fazer o censo, mas um censo bem feito”, defendeu Olinto. “A pandemia está pior, a vacinação não será efetiva até agosto, houve uma mudança econômica e social fortíssima causada pela pandemia. O que aconteceu no último ano é absolutamente atípico, o que seria medido agora é uma transição, não é a realidade da população.”
Os dados colhidos pelo censo, como a quantidade de moradores de cada município, dão origem às estimativas populacionais que integram o cálculo de rateio do Fundo de Participação dos Estados e Municípios.
“O censo é um retrato que deve durar dez anos. Você não pode fazer um retrato de um momento atípico para durar dez anos. As populações dos municípios vão estar deformadas. As pessoas deixaram as cidades grandes para o interior. O Fundo de Participação dos Estados e Municípios é proporcional à população. Nunca se vendeu tanta casa na região serrana do Rio. Você pega Petrópolis, Nogueira, não é a população definitiva, é uma população inflada pela pandemia, mas que vai voltar a ficar estável, mesmo que não retorne ao nível anterior”, ressaltou Olinto.
Segundo o pesquisador do Ibre/FGV, o questionário teria que ser revisto para que fossem incluídas de volta questões referentes à migração, sobre o local de moradia dos informantes antes da pandemia, sobre intenção de mudança depois de solucionada a crise sanitária, sobre eventuais sequelas da covid e suas consequências na vida familiar, por exemplo.
“Se o IBGE diz que não pode adiar o censo, tem que mudar o questionário, porque ele não é adequado ao momento atual”, afirma o ex-presidente do órgão.
Outra preocupação é quanto à taxa de resposta em meio aos temores de disseminação do novo coronavírus. Os recenseadores e supervisores locais teriam que fazer um esforço maior para convencer a população a abrir suas casas para os profissionais de coleta, o que exigiria mais visitas e gastos maiores com logística.
“Se você quer fazer um censo de qualidade num momento de crise, você tem que gastar mais dinheiro, tem que gastar mais em equipamento de proteção, obviamente, mas tem que gastar em publicidade para convencer a população a receber o recenseador. O orçamento para propaganda foi cortado, isso preocupa”, disse Olinto.
O ESTADO DE S. PAULO