Há mais de 30 anos, Fukuyama decretou o fim da história. Teria sido atingido o final da evolução ideológica da humanidade, com a universalização da democracia liberal ocidental como a forma última de um regime de governo, dado o colapso do modelo socialista/comunista. Será que estamos diante do fim do direito tributário? Será que chegamos ao fim da evolução científica desse ramo normativo? A pergunta é válida pois o direito tributário, em apertada síntese, é o ramo que analisa a estrutura das normas tributárias. O ápice de sua aplicação ocorre quando causas chegam ao Supremo Tribunal Federal (STF) para se discutir a adequação de uma norma à Constituição Federal. Se ela é constitucional ou inconstitucional.
Pois essa luta normativa entre o constitucional e o inconstitucional pode estar chegando ao fim. Com a vitória derradeira do inconstitucional. O STF utilizou, no fim de 2020, o argumento de que um tributo não poderia ser julgado inconstitucional, pois, se o fosse, as entidades por ele financiadas perderiam sua fonte de renda. Esse argumento de “impacto das contas públicas”, em essência, é muito utilizado pela Fazenda para pleitear a modulação dos efeitos de uma decisão do Supremo. A lógica é simples: caso o tributo seja julgado inconstitucional, ele deve ser excluído do sistema apenas para o futuro. Para o passado deve permanecer válido, pois se o Tesouro tiver que devolvê-lo aos contribuintes, isso poderia quebrar as contas públicas. Entendemos que esse argumento está equivocado por diversas razões, que descrevemos a seguir.
Violação da separação de poderes: não caberia ao STF ser guardião das contas públicas. Ele é o guardião da Constituição. O Executivo e o Legislativo têm mecanismos para aumentar a arrecadação. E de forma urgente. Justamente por esse motivo as medidas provisórias podem dispor sobre tributos. E leis podem tramitar em regime de urgência. A preocupação com o potencial de impacto no Tesouro, por quaisquer razões, é função do Executivo. Argumento invencível: é uma espécie de argumento circular e de redução ao absurdo. Quanto maior a violação à Constituição, mais tal argumento demandaria sua aplicação. Por exemplo, considere que um município instituísse o imposto de renda a uma alíquota de 10%, o que é flagrantemente vedado, pois o imposto de renda é de competência da União. Aplicando-se o argumento do “impacto nas contas públicas”, essa inconstitucionalidade deveria ser mantida sob pena de reduzir a arrecadação nos municípios. Caso a alíquota fosse de 70% (portanto, violação em maior medida de direitos fundamentais), maior razão haveria para manter tal tributo inconstitucional, afinal, maior rombo nas contas públicas existiria. Imposto sobre o tempo: quanto mais tempo ficasse no sistema uma norma inconstitucional, mais razão ainda haveria para ser mantida, pois o rombo da arrecadação seria maior caso houvesse decisão pela restituição de valores aos contribuintes. É válido dizer, portanto, que a passagem do tempo acaba criando uma obrigação tributária. Terrorismo: é um argumento que busca apenas incutir nos julgadores um medo extremo de que, caso não acolhido, a situação será devastadora. Mas a pergunta que fica é: mas é isso mesmo? O impacto nas contas é tão grande que não pode ser superado de outra forma? Com criação ou aumento de outros tributos? Ou, com a sempre esquecida, possível e bem-vinda redução de gastos do governo?
Incentivo incorreto ao Legislativo: ao realizar o controle das normas, o Judiciário estimula que todo o sistema se ajuste à Constituição. Se normas inconstitucionais são mantidas no sistema de forma reiterada, estimula-se a criação de outras normas inconstitucionais. Ou, ao menos, reduz-se a preocupação dos legisladores com o respeito à Constituição. Por todas essas razões, se aplicado o argumento do impacto nas contas públicas, ele acaba violando com mais força ainda o direito fundamental que ele pretende promover, que é a segurança jurídica. A decisão rápida do Judiciário em afastar determinada tributação provocaria a necessidade de atuação também rápida do Congresso. E isso é possível. Existem ao menos dois casos que comprovam que a rapidez do Judiciário provocou a ajustamento de novas normas. É o caso do Imposto Provisório sobre Movimentações Financeiras (IPMF), que rapidamente foi julgado inconstitucional para então retornar na forma de Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), sem os vícios encontrados no tributo anterior sobre movimentações financeiras. É o caso também da Taxa de Iluminação Pública (TIP), julgada inconstitucional, o que acabou originando a Contribuição para Custeio da Iluminação Pública (CIP). Do contrário podemos estar diante da universalização do inconstitucional. Da sua vitória. Com o atingimento da plena e máxima evolução de nosso sistema. E o fim do direito tributário.
Maurício Luís Maioli é sócio do Feijó Lopes Advogados, coordenador e professor da Especialização de Direito e Gestão Tributária da Unisinos-RS, professor de Direito Tributário e mestre em Direito pela UFRGS
VALOR ECONÔMICO