Esse processo reflete duas grandes mudanças: uma política e outra intelectual. Nos EUA, o compromisso de Biden se assenta em um movimento social – o “Fight for US$ 15” – que vem conseguindo com sucesso pressionar por aumentos nos salários nos âmbitos estaduais e locais, porque há muito o salário mínimo federal não consegue acompanhar a inflação.
Na União Europeia, a reviravolta é ainda mais impressionante. Forçar a redução dos salários em nome da “competitividade” foi uma parte central dos pacotes de socorro financeiro da zona do euro uma década atrás. Desde então, a influência da ortodoxia econômica perdeu força. Após escapar das garras da “troica” de credores oficiais, Portugal aumentou seu salário mínimo sem sofrer efeitos econômicos negativos; em 2015, até mesmo a Alemanha introduziu um salário mínimo legal. A adoção de pisos salariais mais altos via política de governo está relacionada a uma mudança maior em direção ao uso mais ativo do Estado para planejar os resultados da atividade de mercado. Essa mudança se manifesta em uma série de domínios políticos – de um renascimento da aplicação do direito de concorrência a um retorno da política industrial estratégica -, sempre com a UE na liderança.
Mas se os salários mínimos se encontram nas graças dos políticos, isso somente se tornou possível em razão de uma mudança no pensamento econômico tradicional. O velho consenso era o de que salários mínimos mais altos reduziam a taxa de emprego, porque as empresas não iriam querer mais contratar pessoas cuja produtividade poderia não justificar seus salários. A conclusão foi de que os pisos salariais prejudicam aqueles que deveriam ser ajudados. Mas nos últimos 35 anos evidências melhores e uma teoria mais flexível desgastaram essa visão. Agora parece claro que os salários mínimos podem ser significativamente maiores com, na pior das hipóteses, efeitos modestos sobre o emprego. Esta é a conclusão geral da ampla análise de evidências internacionais conduzida no ano passado pelo professor de economia Arindrajit Dube para o governo do Reino Unido. E mais: a experiência dos países escandinavos sugere que pisos salariais elevados podem encorajar o aumento da produtividade. Como empregar muitos trabalhadores em tarefas de baixa produtividade é algo que se torna antieconômico quando eles não podem ser contratados com salários baixos, os pisos salariais criam um incentivo para as empresas investirem mais capital ou de outra forma aumentar a produtividade dos trabalhadores que elas mantêm.
É reconhecido que os países escandinavos conseguiram isso via negociações coletivas e não de pisos salariais legais, e estão entre as poucas nações europeias que não possuem salários mínimos obrigatórios. Seus sindicatos sempre se preocuparam com a possibilidade do salário mínimo legal reduzir os incentivos para as pessoas se organizarem, antes de mais nada. Como consequência, esses países demonstram ceticismo com a iniciativa de Bruxelas. Eles deveriam acabar com essa resistência. A Comissão Europeia desviou-se de seu caminho de não ameaçar modelos estabelecidos de negociação coletiva nos países europeus que adotam esses modelos. Pelo contrário, em mais uma novidade, Bruxelas está pressionando os países para que eles facilitem uma fixação de salários mais amplamente negociada, inclusive nos países que estabelecem o salário mínimo.
A natureza dos mercados de trabalho hoje significa que os sindicatos deveriam ver os pisos salariais ambiciosos como seus amigos, e não inimigos. Eles reduzem o incentivo para que os empregadores se esquivem dos acordos coletivos pela contratação de trabalhadores não sindicalizados – frequentemente migrantes -, sob condições piores, e solapem os empregadores responsáveis. É por isso que o governo da Noruega, por exemplo, recorreu à extensão dos resultados de acordos coletivos para todos os setores, criando o que na prática são os salários mínimos setoriais.
Os pisos salariais legais, assim como os padrões trabalhistas obrigatórios, também liberam os sindicatos para que eles se concentrem em um maior leque de remuneração e condições de trabalho. Mas o mais importante é que a adoção política do salário mínimo alto abre as portas para uma mudança na maneira como as elites governantes veem as fontes de crescimento econômico, do foco na “competitividade” dos salários à produtividade da mão de obra. A “competitividade” pressupõe que a prosperidade decorre da competição bem-sucedida nos preços – numa economia mundial que inclui a China.
Por outro lado, os pisos salariais elevados exigem a vontade de substituir os empregos de baixa remuneração por outros que compitam em produtividade e qualidade. É claro que conseguir isso exige muito mais do que salários mínimos maiores. Também exige uma ampla gestão da demanda agregada, um amplo financiamento a programas que ajudem as pessoas a conseguir bons empregos, e investimentos suficientes em educação e treinamento. Em meio a uma crise profunda, elevar os salários na ponta mais baixa parece uma aposta perigosa. Mas diante do dano provocado à Europa pela obsessão com a “competitividade”, a alternativa é pior.
O ESTADO DE S. PAULO