Indústria aposta em cursos técnicos e mentorias para ampliar diversidade e inclusão

Capacitação de mulheres, negros, PcDs e grupos minoritários é maneira que empresas encontraram para diversificar quadro de funcionários na indústria
Por Katia Simões — Para o Prática ESG, de São Paulo

Ao realizar em 2022 um programa de capacitação de pessoas com deficiência (PcDs) para trabalhar em alto mar (offshore), a Constellation Oil Services, empresa de perfuração de petróleo e gás, quebrou uma das principais crenças do setor: PcDs não podem trabalhar embarcados. No total, 14 pessoas participaram de treinamentos em segurança de plataforma marítima e escape de helicóptero submerso. Cinco foram contratadas. “Comprovamos que a limitação está na nossa cabeça, isso nos dá muito orgulho”, diz Silvia Nunes, diretora administrativa. Ela enfatiza, porém, que nas operações offshore, em que os riscos operacionais são grandes, a inclusão de PcDs ainda continua sendo um desafio a ser vencido, especialmente em relação à segurança do trabalho. “Iniciativas como a nossa, porém, ajudam a amadurecer a pauta no setor e a impulsionar as mudanças necessárias para a garantia da igualdade de oportunidade para todos”, reforça.

Com o mesmo pensamento, a Aker Solutions, que oferece produtos e serviços integrados para a indústria de energia, iniciou em dezembro de 2022, o Programa Mulheres a Bordo, a fim de acelerar a inserção de profissionais do sexo feminino na indústria de óleo e gás. Com duração de cinco meses, 300 horas de qualificação teóricas e práticas, incluindo visitas à planta de Subsea Lifecycle Services, em Rio das Ostras (RJ), o programa selecionou 20, entre 500 inscritas. “Trata-se de um mercado masculinizado e ao lançarmos o projeto queremos deixar claro que as mulheres, desde que capacitadas, podem atuar offshore”, diz Marcela Chamano, líder do programa de Diversidade e Inclusão da Aker no Brasil. O público feminino também é foco do programa de jovem aprendiz para a linha de manufatura, que, no ano passado teve 2000 inscritas e 20 selecionadas para uma capacitação de 900 horas. “Em 2022, tínhamos como meta alcançar 25% de mulheres em posição de liderança e 30% em todos os postos. Podemos dizer que evoluímos bem, com 26,8% entre os líderes e 25,8% na companhia como um todo.”

Programas voltados às minorias começam a se multiplicar na indústria em decorrência do avanço da agenda ESG. Mas, ainda estão longe do patamar ideal. No setor de óleo e gás, por exemplo, um estudo global da consultoria McKinsey, de 2019, mostrou que a participação feminina era apenas 15%, sendo que metade das empresas analisadas não tinham mulheres em alta gerência, e o outro terço possuía só uma em posições de chefia. No mesmo relatório, a consultoria aponta que o problema não é exclusivo do setor de óleo e gás. A atividade manufatureira em geral tinha pouco menos de 20% de participação feminina em altos cargos e pouco mais de 30% em início de carreira. Farmacêuticas e de energia elétrica eram as empresas com mais mulheres em posições de liderança no setor industrial, mas de cerca de 30%, apenas.

No Brasil, a diversidade, de maneira geral, é um desafio. Dados da empresa de recrutamento e seleção Vagas.com de 2022, que considera todos os setores, apontam que só 0,4% dos trabalhadores negros no mercado de trabalho ocupam cargos de diretoria, o mesmo percentual dos indígenas. Entre os brancos, a participação nas altas posições é quase o triplo, de 1,1%. Os negros também são minoria em postos de supervisão e coordenação (3,9%) e gerência (1,9%). O percentual de brancos nesses cargos é de 5,20% e 3,30%.

“Tradicionalmente os negros estão na base da produção industrial. O desafio está em ampliar a participação a partir dos primeiros postos de liderança”, diz Renata Moraes, CEO da ImpulsoBeta, consultoria especializada em Diversidade, Equidade e Inclusão. “Existe preconceito de classe junto aos tomadores de decisão e só se quebra esse tipo de paradigma com aculturação da companhia e preparação bem-feita para recepção dos grupos minoritários”.

Boa parte das companhias têm adotado o modelo de mentoria e treinamento de lideranças como instrumentos para mudar a cultura e garantir uma boa ambientação dos grupos minoritários. Na empresa de bens de consumo Unilever, que trabalha há 10 anos com políticas de gênero, as mulheres ocupavam em 2018, no Brasil, 53% dos cargos de liderança. Hoje, somam 56%. “Os talentos estão na organização, só precisam ter oportunidade”, diz Ana Paula Franzoti, diretora de RH. “O Programa Prontidão, direcionado a pessoas pretas, por exemplo, oferece mentoria, letramento sobre a questão racial tanto para mentores como para mentorados e ferramentas para aceleração de competências técnicas, emocionais e comportamentais dos profissionais negros”. Os resultados, segundo ela, foram significativos. Houve 33% de movimentação entre os 48 participantes, sendo 15% de promoção a cargos de gerência – destes as mulheres responderam por 70% – e 18% para coordenação.

Em 2022, a Unilever colocou em prática o programa de mentoria “Não foi sorte, eu estou pronta”, que impactou cerca de 500 mulheres, de estagiárias a cargos de gerência, sendo 200 em mentorias individuais. “O grande desafio para ampliação dos grupos minoritários é garantir o letramento constante das pessoas, porque o viés do preconceito é estrutural. Isso vale tanto para o operador de fábrica quanto para diretor”, diz Franzoti.

Na visão de Andrea Kohlrausch, CEO da Bibi Calçados, a mudança se dá pelo exemplo. Ela conta que quando, em 2010, a indústria iniciou o projeto da Fábrica de Talentos, em parceria com o Senai, voltado à capacitação de jovens para atuar na indústria calçadista, esse tipo de ação era rara. “Hoje, vemos muitas indústrias na Serra Gaúcha trazendo a escola para dentro da fábrica e isso impacta na formação de jovens que enxergam uma oportunidade de crescimento no polo calçadista.” Em 12 anos, 650 jovens passaram pela Fábrica de Talentos, a maioria de baixa renda. Só em 2022, a Bibi aplicou R$ 2 milhões no programa.

Ricardo Sales, CEO da consultoria Mais Diversidade, observa que foi apenas em 2016 que a indústria passou a olhar o tema diversidade e inclusão com mais atenção. “Quem opera direto com o consumidor sente mais forte a pressão, sai na frente”, afirma. “Por isso, a indústria passou a se movimentar mais tarde, em decorrência das exigências da cadeia de valor, de ações regulatórias e pela própria necessidade de atrair talentos das novas gerações.” Segundo ele, 2020 foi um ano de inflexão, uma vez que a pandemia escancarou as desigualdades. “Até então, a pergunta era: Para que mexer com isso? Hoje é: Como podemos fazer isso?”, afirma. “Trata-se de uma mudança significativa que vem permeando até mesmo instituições como a B3 [bolsa de valores], que passou a exigir das empresas listadas ações mais consistentes”.

Listada na B3 e uma das maiores mineradoras do mundo, a Vale conta com 30% de mulheres em seu Comitê Executivo e traçou metas ousadas para os próximos anos: dobrar a representatividade de mulheres na força de trabalho de 13% em 2021 para 26% até 2025 e ter 40% dos cargos de liderança no Brasil ocupados por empregados negros até 2026. Quando a meta foi estabelecida, em dezembro de 2021, a ocupação estava em 29%. “A Vale passa por um processo de transformação cultural e reconhecer e desenvolver o talento das pessoas é parte essencial dessa mudança”, afirma Viviane Ajub, gerente global de diversidade e inclusão.

Entre os programas desenvolvidos pela Vale estão o Potencializando Talentos Negros, lançado em 2022, que oferece capacitação a 100 profissionais autodeclarados negros e pardos na companhia; o Potencializando Talentos com Deficiência, que começou em 2021 com uma versão piloto com cerca de 30 pessoas e, no ano passado, ofereceu 350 vagas; e Formação Profissional, que em 2022 contratou cerca de 1.300 mulheres para trabalhar em áreas ocupacionais.

Também em 2022, a Vale deu início a dois projetos voltados a mulheres negras. O Programa de Aceleração de Carreira para Mulheres Negras, com 100 participantes e duração de cinco meses; e o Impulsiona, que tem por objetivo capacitar mulheres negras em situação de vulnerabilidade social, com oferta de vagas nas regiões do Pará, Maranhão, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo.

Segundo Ajub, o valor da diversidade é percebido quando consegue sacudir o sistema, provocar mudanças no entorno. Como exemplo ela cita o caso de uma jovem de Carajás, filha e neta de garimpeiros, que aos 21 anos participou de um programa de capacitação da Vale e hoje, aos 24, é supervisora. “Ela provocou impacto na sociedade onde vive, mostrou que era possível. Hoje são 50 mulheres de Serra Pelada nos quadros da Vale”, afirma.

https://valor.globo.com/carreira/esg/noticia/2023/01/18/industria-aposta-em-cursos-tecnicos-e-mentorias-para-ampliar-diversidade-e-inclusao.ghtml

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