Políticas para o setor produtivo são foco do terceiro balanço da série do Valor sobre o governo Bolsonaro
Por Lu Aiko Otta — De Brasília
Iniciado com a promessa de uma forte guinada liberal, privatizações em massa, ampla agenda de reformas e drástica redução da presença estatal na economia, o governo de Jair Bolsonaro chega ao final com um saldo misto. Se por um lado não entregou as reformas tributária e administrativa e privatizou menos do que pretendia, por outro aprovou um conjunto de mudanças microeconômicas que podem ter mudado a dinâmica de crescimento da economia brasileira. Se é fato ou não, é algo que só se saberá em alguns anos.
“Dou uma nota B”, disse o economista Claudio Frischtak, da consultoria Inter.B. Ele avalia que houve um “esforço danado” para modernizar a economia brasileira e que, de modo geral, a gestão econômica foi bem.
Só não é um “A” porque, na reta final, o ministro da Economia, Paulo Guedes, aderiu ao projeto de reeleição de Bolsonaro e “desancorou” as expectativas na área fiscal.
Além disso, diz Frischtak, foi cometido um erro logo no início do governo: a ruptura política com o então presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, (PSDB-RJ), que pôs a perder o impulso de aprovação de reformas no Congresso Nacional.
Houve movimentos no sentido de reduzir o papel do Estado na economia, mas esses foram de má qualidade, avaliou a economista Elena Landau, que elaborou o programa da ex-candidata Simone Tebet (MDB).
A privatização da Eletrobras, em junho deste ano, por exemplo, foi uma medida correta, na sua avaliação. No entanto, realizada a um custo elevado, por causa dos “jabutis” incluídos pelo Congresso Nacional na lei que permitiu a operação.
“Jabutis” são medidas alheias ao objetivo da lei, que é a privatização. O maior deles é o que determina a instalação de térmicas a gás em áreas onde não existem gasodutos, um investimento de valor elevado. Estimativa recente divulgada pela equipe de transição de Luiz Inácio Lula da Silva aponta para uma fatura de R$ 368 bilhões para o conjunto dos “jabutis”.
As concessões avançaram, mas não foram capazes de atrair novas empresas, observou Landau. Em rodovias, por exemplo, área em que atuou o agora govenador eleito de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), os leilões foram disputados pelos mesmos grupos nacionais que já estavam no mercado.
“Houve muita instabilidade política no governo Bolsonaro, muita volatilidade no câmbio”, disse. Não se materializou, assim, o ingresso de novas empresas e de fundos estrangeiros que se vislumbrava ao final do governo de Michel Temer.
O liberalismo tampouco funcionou durante a corrida eleitoral, quando ficou evidente a intervenção governamental no mercado de combustíveis, comentou. “É um desarranjo grande, porque o Bolsonaro legitimou uma discussão sobre a independência da Petrobras”, avaliou Landau.
Da mesma forma, a Caixa foi convertida em um “braço político-eleitoral”, na sua visão. O banco ofereceu crédito consignado aos beneficiários do Auxílio Brasil, uma operação que não interessou a outras instituições por seu elevado risco.
Das grandes empresas que se propôs a vender, o governo deixou na prateleira os Correios. Avançou em outras áreas, como a venda da BR Distribuidora, e outras empresas menores. Mas o próprio Guedes se confessou frustrado com o andamento do programa.
Privatizar se mostrou mais difícil do que imaginava a equipe econômica antes de assumir o governo. Prova disso foi a saída prematura de Salim Mattar, escalado para vender empresas e imóveis da União. Em agosto de 2020, ele saiu afirmando que o “status quo” não queria privatizações.
Junto com Mattar, deixou o governo outro integrante do time liberal, Paulo Uebel, encarregado da reforma do Estado. Num governo presidido por um ex-parlamentar que fez carreira defendendo salários dos militares, a reforma administrativa teve pouco apoio.
O confronto com ideias do presidente custou a Guedes outro integrante da primeira formação da equipe, o secretário da Receita Marcos Cintra. Foi demitido em setembro de 2019, por defender a criação de um tributo sobre transações, alvo de oposição histórica de Bolsonaro.
A reforma tributária, por sua vez, ficou enredada pelo fato de o ministro defender mudanças diferentes das que haviam sido formuladas pelo Congresso Nacional. Os textos da PEC 45, na Câmara dos Deputados e PEC 110, no Senado, não saíram do primeiro estágio de tramitação.
Se nas grandes reformas houve dificuldade e frustração, no campo microeconômico houve avanços. Um dos principais artífices das reformas, o ex-secretário de Política Econômica e atual ministro de Minas e Energia, Adolfo Sachsida, listou 37 reformas estruturais aprovadas nos últimos quatro anos.
O rol vai desde a independência do Banco Central aos dois cortes nas alíquotas do Imposto de Importação, dos programas de ajuda financeira aos Estados na pandemia à criação do Sistema Eletrônico de Registros Públicos.
O conjunto, avaliou, indica mudança na tendência de longo prazo da economia. Essa é a tese defendida por ele e pela equipe de Guedes: a que o setor privado passou a liderar o crescimento, no lugar do Estado.
Por causa dessa alteração, o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) tem sido maior do que o estimado pelos economistas, inclusive os do governo.
“Mudou o modelo”, afirmou ao Valor o secretário-executivo do Ministério da Economia, Marcelo Guaranys.
Ele destacou que a gestão de Guedes teve, ao lado do esforço de ajuste nas contas públicas, uma vertente de melhoria do ambiente de negócios.
O avanço nesse segundo braço abriu caminho para um funcionamento mais rápido e menos custoso das empresas, o que deu um impulso diferente à economia, segundo o secretário.
“Acho que não tem ainda evidência de que o potencial de crescimento não inflacionário, que é de 1,5%, 2%, se ampliou”, contrapôs Frischtak. Para ele, serão necessários mais dois ou três anos até se ter clareza se a aprovação de novas leis para os setores de saneamento e gás, por exemplo, colocaram a economia brasileira em outro patamar.
Os novos marcos regulatórios e o impacto das medidas de desburocratização e digitalização adotadas pelo atual governo ainda não têm seus efeitos claramente mensuráveis, comentou o professor Joelson Sampaio, da Fundação Getulio Vargas. Como a economia brasileira está em processo de recuperação após o choque da pandemia, afirma, é difícil separar o que é o efeito de cada coisa.
A melhoria do ambiente de negócios esteve no centro da agenda do Ministério da Economia e utilizou como guias o Doing Business, do Banco Mundial, e o relatório de competitividade do Fórum Econômico Mundial. Outra bússola foi o processo de acessão do Brasil à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), pois para ser sócio é preciso aderir às melhores práticas adotadas pelas principais economias do mundo.
Um resultado disso é, por exemplo, a redução do custo para importar e exportar, destacou o sócio fundador da BMJ Consultores Associados Welber Barral. O processo foi todo digitalizado e as autorizações exigidas por diversos órgãos do governo para o embarque e desembarque de mercadorias podem ser obtidos eletronicamente, numa janela virtual única.
A mudança está completa para exportações e em andamento para importações. O tempo gasto para uma exportação caiu de 13 para 5 dias e na importação, de 17 para 9 dias.
Nos últimos quatro anos, as normas tributárias do comércio exterior, como as que tratam de preços de transferência e de royalties, foram ajustadas para se alinhar a dos países da OCDE. Ainda há trabalho à frente e não está claro se o futuro governo prosseguirá com o processo de entrada no organismo. No entanto, avaliou Barral, o setor privado seguirá pressionando por maior convergência com a prática internacional.
Parte dessas reformas contribuíram para reduzir o chamado Custo Brasil, que são os fatores que prejudicam a competitividade das empresas brasileiras perante seus concorrentes internacionais. Com isso, Guedes conseguiu avançar minimamente em outra linha básica de sua política, a abertura econômica.
Um acordo celebrado com a indústria nacional previa que a abertura ocorreria pari-passu à redução do Custo Brasil. É como se concretizou a máxima de Guedes: “sou liberal, mas não sou trouxa.”
Neste ano, a corrente de comércio brasileira atingiu valores recordes. Conforme dados do Banco Central, deverá encerrar este ano em 34,2% do PIB, ante 22,7% do PIB em 2018. É, porém, um comércio ainda muito dependente de commodities, disse Barral. Não se viu, nos últimos anos, o avanço da indústria na pauta de exportação brasileira.
Para Joelson Sampaio, a indústria “andou de lado” nos últimos quatro anos, em função da pandemia. O mundo ainda sente os efeitos da ruptura das cadeias globais de valor.
O horizonte futuro para o crescimento é nebuloso, avalia Sampaio. Ainda há incertezas sobre a condução da política fiscal, o que afeta as expectativas de mercado. Além disso, a perspectiva é que a economia mundial cresça menos, o que afeta o Brasil.
https://valor.globo.com/politica/noticia/2022/12/22/liberalizacao-da-economia-foi-parcial.ghtml