Economistas veem risco de mais comprometimento fiscal se desenho da nova política não for adequado
Por Marcelo Osakabe
A retomada da política de ganhos reais para o salário mínimo precisa ser pensada com cuidado, dizem economistas consultados pelo Valor. O risco é fazer o país se defrontar novamente com questões que já estavam postas no fim da era petista e em um cenário que segue desafiador do ponto de vista fiscal.
Promessa de campanha do PT, o salário mínimo deve ter um aumento real entre 1,3% e 1,4% em 2023, afirmou na quarta-feira o senador eleito Wellington Dias (PI). Com isso, irá retomar uma trajetória interrompida em 2019 e que foi uma das estrelas da política econômica e social do partido. Para os próximos anos, a ideia é o reajuste levar em conta uma média do crescimento do PIB dos cinco anos anteriores.
Segundo o economista Marcos Mendes, do Insper, por uma questão conjuntural, tal ajuste já tem espaço reservado na proposta de Orçamento atual. Isso porque a LDO enviada ao Congresso conta com uma projeção defasada do INPC, de 7,4%, o que significa conceder um aumento de R$ 1.212 para R$ 1.302. Com isso, o reajuste prometido deve acabar maior que a inflação realizada do período. O Ministério da Economia já reduziu sua projeção para o indicador no fim de 2022 para 6,54%.
“O PT vai conseguir, dando R$ 1 ou R$ 2 a mais do que o proposto, dizer que cumpriu a promessa em 2023. O problema é criar aumentos automáticos para frente”, diz. “Olhando para o médio e longo prazo, uma política de valorização é problemática por vários motivos. Nas finanças públicas, o ideal seria reduzir a relação entre despesa e PIB, que é muito alta, na proporção de 19%. Dar ganhos reais a um item de despesa tão pesado com base em aumentos passados do PIB, que sempre tendem a ser positivos, cria uma rigidez nessa relação, obrigando o governo a buscar espaço em outros lugares.”
Os especialistas costumam citar que cada real a mais no salário mínimo gera um aumento permanente de R$ 400 milhões nos gastos públicos. Nos cálculos de Manoel Pires, do Observatório Fiscal da FGV, cada 1% de reajuste deve se traduzir em algo como R$ 5,8 bilhões a mais nas contas públicas.
Além do salário de servidores, ele impacta aposentadorias e pensões concedidas pelo INSS e benefícios sociais, como o Benefício de Prestação Continuada (BPC), o seguro-desemprego e o abono salarial. Mesmo programas como o Auxílio Brasil, o antigo Bolsa Família, acabam afetados, uma vez que a regra mexe com as faixas de elegibilidade, lembra Marcelo Neri, diretor do FGV Social.
“Neste caso, a boa e a má notícia se confundem: impacta muita gente, mas com alto custo fiscal. Aqui a escolha é se quem se beneficia são os mais pobres, o que também determina o impacto sobre a economia e o PIB”, diz.
Neri lembra que políticas mais focalizadas nas faixas mais baixas de renda tendem não somente a ser mais eficientes do ponto de vista do combate à pobreza, mas também se traduzir em um impulso maior sobre a economia. Citando um estudo de 2014, ele lembra que o efeito multiplicador do Bolsa Família, que é afetado apenas indiretamente pelo mínimo, que, foi de 1,78 – cada real gasto no programa aumentava o PIB em R$ 1,78. No caso do BPC, em que o impacto é mais imediato, o multiplicador encontrado foi de R$ 1,19.
“No caso do salário mínimo, o céu não é o limite. Há outros instrumentos de política mais eficazes, pois são mais cirúrgicos”, diz. “No fundo, o mínimo faz muitas coisas ao mesmo tempo. É o numerário da política pública brasileira.”
Para além do fiscal e do combate à desigualdade, o mínimo também afeta a estrutura de custos das empresas e o mercado de trabalho. A teoria econômica dita que, para não haver problemas, os salários precisam evoluir de acordo com a produtividade da economia – caso fique acima, as firmas poderiam ser levadas a demitir para preservar suas margens de lucro. Existe, portanto, uma escolha entre salário e nível de emprego.
“Se o mínimo é muito alto em relação ao salário praticado, os mais pobres e menos produtivos são expulsos do mercado formal. Ninguém contrata alguém que agrega menos que o seu salário, até porque existem os encargos e impostos”, resume Mendes. “E o mercado informal é pior, menos produtivo e mais desprotegido.”
A produção acadêmica, no entanto, tem mostrado que os resultados variam de acordo com o setor, diz Daniel Duque, pesquisador do Ibre FGV. No de serviços, que não compete com o mundo, existe um efeito do reajuste sobre os preços que é pago em parte pelo empresário, mas com maior parcela indo para os consumidores. Apesar disso, o desemprego não cai. “Nos demais setores, que enfrentam a concorrência dos importados, existe sim um efeito desemprego que costuma ser bem pequeno, refletido em menores lucros”, diz.
Uma questão dentro desse debate, no caso brasileiro, é sobre a proporção entre o salário mínimo e o salário médio da economia. No início da era PT, essa relação era baixa, de cerca de 20%. Isso teria sido um dos fatores que permitiram um prosseguimento da política de valorização sem que isso gerasse muitos atritos na economia.
No entanto, essa relação subiu paulatinamente para perto de 50% ao longo dos anos e, mesmo hoje, se encontra em 44,3%.
Por isso, à medida que se aproximava o momento de rever a regra sobre o mínimo, uma moderação dos ganhos começou a ser defendida mesmo entre os mais heteroxos. Pela fórmula aprovada no governo Lula e transformada em lei no governo Dilma Rousseff, o reajuste era feito com base na inflação mais a média dos PIB dos dois anos anteriores.
Pires e Nelson Barbosa, economistas do Ibre FGV com passagem pelo governo Dilma, defenderam, em um livro publicado ainda em 2015, passar a considerar a correção pelo PIB per capita, um critério mais próximo da evolução da produtividade na economia. Nelson Marconi, economista ligado a Ciro Gomes (PDT), também defendeu o uso do PIB per capita dos quatro anos anteriores.
Para Pires, a regra anunciada pelo PT resolve um problema de da assimetria. “Antes, o reajuste era muito volátil e, quando o PIB caia, ele não ficava negativo porque não se podia dar aumento abaixo da inflação. Agora, a média do PIB de cinco anos suaviza os reajustes no tempo e dificilmente terá esse problema de ter resultado negativo.”
O economista considera o a alta de 1,4% “viável dentro da discussão de waiver”. “O mínimo ficou muito tempo sem reajuste real”, diz.
Para Duque, o espaço hoje é menor que o que existia durante os governos do PT. “O Brasil não cresce tanto, havia um bônus demográfico que acabou, o espaço fiscal é muito menor e a própria lucratividade das empresas ainda segue espremida em relação aos anos 2000. Ainda assim, sou um dos que defendem que há algum espaço para a valorização do mínimo”, afirma, lembrando que existe um rol de medidas que podem ser discutidas e que não necessariamente estão ligadas à regra em si, como a desvinculação dos benefícios sociais.
Existe, por fim, a agenda da produtividade, cujo crescimento mais rápido ajudaria a acomodar a retomada da política. “No fundo, é a produtividade que vai assegurar a médio e longo prazo um crescimento do mínimo”, diz Rafael Cagnin, economista do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi).
Cagnin ressalta que parte das ações nesse sentido demora a dar frutos, mas alguns podem ter retorno mais imediato. Um exemplo nesse sentido, diz, é o Programa Brasil Mais Produtivo, que dá suporte a micro, pequenas e médias empresas.
“Ele existe desde 2017 e é pequeno, sem escala, mas um estudo da Cepal com o Ipea mostrou que empresas que se submetem a ele têm ganhos 40% ou até 50% na produtividade em pouco tempo”, conta. “Além disso, por focar nas pequenas, ajuda a reduzir a heterogeneidade da indústria brasileira e pode ser replicada em todo o território nacional, o que pode ter efeito de redução das desigualdades regionais. Pode ser uma das apostas para esse Ministério da Micro e Pequena Empresa que tem sido aventado”, completa o economista.
Mesmo mudanças que demandam tempo, como a reforma tributária, poderiam trazer ganhos nesse sentido, segue o economista do Iedi. “Uma reforma desse tipo deve reduzir a cumulatividade dos tributos, o que é importante em setores em que a cadeia é longa, como é o caso da indústria. Além disso, é bom indicativo, ajudaria a destravar investimentos.”
https://valor.globo.com/brasil/noticia/2022/11/04/analistas-sugerem-cautela-com-o-minimo.ghtml