A equivocada leitura do Tema Repercussão Geral nº 555
BRUNA LUPPI
RAPHAEL SILVA CASTRO
O cenário de incertezas resultante da abrupta mudança de entendimento da Receita Federal quanto ao Adicional da Contribuição aos Riscos Ambientais do Trabalho (RAT) sobre Ruído tem confirmado lançamentos fiscais realizados num passado mais distante e, mais recentemente, ensejado a fiscalização e autuação de alguns contribuintes, mas ainda com o potencial de alcançar outros tantos num ritmo cada vez mais crescente e atingir cifra bilionária. Ainda mais a partir da inclusão desse tema no Plano Anual de Fiscalização de 2019, da RFB.
Esse contexto se reforçou com o surgimento de um agravante: o precedente do Supremo Tribunal Federal (STF) firmado, em 2015, no ARE nº 664.335/SC, com repercussão geral reconhecida[1] e a partir do qual se analisou a eficácia do fornecimento de EPI como fator de descaracterização do tempo de serviço especial. O referido recurso envolveu a discussão, à luz dos artigos 195, §5º e 201, caput e §1º da Constituição Federal, da possibilidade, ou não, de o fornecimento de Equipamento de Proteção Individual (EPI), informado no Perfil Profissiográfico Previdenciário (PPP), descaracterizar o tempo de serviço especial para aposentadoria.
Naquela ocasião, a conclusão alcançada pelo STF foi no sentido de reconhecer o direito constitucional à aposentadoria especial nos casos em que o trabalhador é exposto ao agente nocivo físico, químico ou biológico à sua saúde, afirmando que tal direito será afastado quando o uso do EPI for capaz de neutralizar a nocividade. Contudo, ao tratar especificamente do agente físico ruído, firmou-se outra tese, no sentido de que a utilização e eficácia do EPI na neutralização do efeito nocivo nos casos em que o trabalhador está exposto a ruído acima do limite legal de tolerância não descaracterizam o tempo de serviço especial para a aposentadoria[2].
Vale dizer, o Supremo entendeu pela ineficiência do uso de EPI, posto que o ruído causaria danos ao organismo que vão além daqueles relacionados à perda das funções auditivas — os chamados efeitos extra-auditivos.
Assim, se antes a comprovação da eficácia do EPI era determinante para se aferir o direito ou não à aposentadoria especial, a partir do precedente firmado pelo STF, a eficácia das medidas necessárias à redução da nocividade do agente ruído no ambiente de trabalho, quando registrado em níveis acima do permitido pela legislação aplicável, não mais se revelariam suficientes para afastar o direito à aposentadoria especial.
Trata-se de uma total reviravolta do modo como historicamente esse assunto vinha sendo tratado.
Acontece que a análise do STF ocorreu em precedente que tratou do direito do trabalhador à aposentadoria especial, e não especificamente do Adicional ao RAT devido pelas empresas como fonte de custeio para o financiamento desse benefício social. Ou seja, essa controvérsia foi julgada, exclusivamente, sob a ótica do benefício do trabalhador à aposentadoria especial.
Por isso, a mera aplicação direta e literal do Tema nº 555 nos casos que tratam da exigibilidade do Adicional ao RAT – matéria diversa daquela julgada pela Suprema Corte e que possui outros contornos legislativos que não podem ser simplesmente descartados –, significa atribuir interpretação extensiva ao precedente. E mais do que isso, admitir sua aplicação em matéria tributária tal como pretende a RFB, ainda mais com efeitos retroativos, coloca em xeque os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança, da boa-fé e, o não menos importante, princípio da legalidade.
Somado a isto, e embora o STF tenha afirmado que o ruído causa danos ao organismo que vão além daqueles relacionados à perda das funções auditivas e que existem inúmeras outras consequências físicas, é imprescindível o desenvolvimento de estudos mais profundos que realmente comprovem quais os efeitos que a exposição ao ruído em altos níveis provoca à saúde. O entendimento do Supremo considerou apenas doutrinas técnicas sobre o tema, sem estudos mais minuciosos ou suporte em perícias adicionais necessárias a fazer a prova dessas condições ou mesmo do nível de ruído em que ocorre o desencadeamento desses efeitos extra-auditivos e das https://sindeprestem.com.br/wp-content/uploads/2020/10/internet-cyber-network-3563638-1.jpgs que mitigam os efeitos do ruído no sistema auditivo.
Inclusive, naquela ocasião, o próprio STF sinalizou que a solução encontrada era provisória, diante da possibilidade de no futuro se desenvolver https://sindeprestem.com.br/wp-content/uploads/2020/10/internet-cyber-network-3563638-1.jpg efetivamente capaz de inibir os efeitos da exposição ao ruído: “Adequando as duas teses ora firmadas, temos, nesta segunda, solução evidentemente provisória. Se atualmente prevalece o entendimento que não há completa neutralização da nocividade no caso de exposição a ruído acima do limite legal tolerável, no futuro, levando em conta o rápido avanço tecnológico, podem ser desenvolvidos equipamentos, treinamentos e sistemas de fiscalização que garantam a eliminação dos riscos à saúde do trabalhador, de sorte que o benefício da aposentadoria especial não será devido”. (Grifou-se)
A reforçar que se trata de solução provisória, destaca-se a possibilidade de novos e mais completos estudos atestarem a plena eficácia das https://sindeprestem.com.br/wp-content/uploads/2020/10/internet-cyber-network-3563638-1.jpgs já existentes na inibição do ruído.
Além disso, sob o prisma da segurança jurídica, somente se poderia admitir que a nova jurisprudência do STF – se aplicável fosse – tivesse efeitos para os fatos ocorridos após a fixação do Tema nº 555 – diga-se, a partir de 2015 –, sob pena de se atribuir efeitos retroativos ao citado precedente, o que é vetado pela jurisprudência[3], à luz, inclusive, do disposto na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
Contudo, corroborando para que fosse atribuído um sentido equivocado ao Tema nº 555 – justamente com base nesse precedente do STF –, a RFB editou o Ato Declaratório Interpretativo (ADI) nº 2, em setembro de 2019, pelo qual “ainda que haja adoção de medidas de proteção coletiva ou individual que neutralizem ou reduzam o grau de exposição do trabalhador a níveis legais de tolerância, a contribuição social adicional para o custeio da aposentadoria especial (…), é devida pela empresa”.
Por outro lado, diante da complexidade da discussão em torno da real eficácia dos métodos de proteção adotados pelas empresas, não se pode imaginar que o julgamento do ARE nº 664.335/SC seja capaz de encerrar em definitivo essa discussão, ainda mais considerando que tal precedente analisou o tema de forma limitada, e sem a colaboração dos representantes dos contribuintes interessados e diretamente afetados por essa discussão.
Mas o fato é que, a partir de uma leitura extensiva daquele precedente, os Tribunais, em decisões ainda escassas, pois esse tema começou a ser tratado mais recentemente no âmbito judicial, têm aplicado indiscriminadamente aquele julgado para justificar a manutenção das cobranças do Adicional ao RAT por ruídos, inclusive induzidos pelo ADI nº 2/2019 da RFB.
Todos esses pontos reforçam a necessidade de os contribuintes discutirem fortemente a aplicabilidade e as premissas firmadas no Tema nº 555, sobretudo a partir da compreensão da real eficácia das medidas de segurança adotadas pelas empresas para atenuar os efeitos extra-auditivos, discussão que deixaremos para o terceiro e último artigo dessa coletânea.