Reforma do Imposto de Renda pode aumentar tributo para empresas
As mudanças no Imposto de Renda propostas na segunda parte da reforma tributária podem elevar os tributos pagos pelas empresas, afirmam contabilistas e advogados do setor. No caso das companhias da categoria de lucro presumido, a alíquota subiria de 34% para 49%. As alterações foram entregues na sexta-feira (25) à Câmara, pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. A proposta fala em diminuir a alíquota do IRPJ (Imposto de Renda de Pessoas Jurídicas) de 25% para 20%, mantendo a taxa de 9% de CSLL (Contribuição Social sobre Lucro Líquido). Além disso, o governo também propôs tributar em 20% os lucros e dividendos –com uma isenção de até R$ 20 mil mensais para as micro e pequenas empresas. Os dividendos são uma parte do lucro de uma empresa que é dividida entre seus acionistas —sejam eles pessoas físicas ou jurídicas. Com a nova cobrança sobre dividendos, considerando empresas do lucro presumido, por exemplo, a alíquota que antes era de 34% passaria a ser 49% tendo em vista a soma total de IRPJ, CSLL e o novo tributo sobre dividendos. Segundo Eduardo Pugliese, sócio da Schneider, Pugliese, Sztokfisz, Figueiredo e Carvalho Advogados, é preciso cautela ao fazer a conta neste caso, uma vez que são rendimentos diferentes —a tributação do lucro acontece sobre a pessoa jurídica e a dos dividendos acontece sobre o acionista ou quotista da empresa. “De qualquer forma, é importante dizer que essa reforma quer, efetivamente, majorar a arrecadação federal, mas também faz critérios de justiça interessantes, evitando abusos em planejamentos tributários, por exemplo. Mas é preciso tomar um pouco de cuidado. O IR precisa ser um tributo graduado de acordo com a capacidade tributária de cada um”, disse o executivo. Em nota, a Receita Federal afirmou que o projeto propõe a volta da tributação sobre dividendos distribuídos aos sócios pela empresa e a redução da tributação dos lucros apurados por ela. “Deve-se destacar que a tributação dos lucros e a tributação dos dividendos são completamente distintas. De um lado a empresa e de outro a pessoa física do sócio. O Projeto de Lei propõe a volta da tributação sobre dividendos distribuídos aos sócios pela empresa e a redução da tributação dos lucros apurados por ela”, afirmou a Receita. “A volta da tributação sobre dividendos é uma questão que vem sendo considerada há algum tempo, que se fundamenta em diversos argumentos econômicos e jurídicos que são suporte à proposição”, completou, em nota. Para a sócia na área de tributário da TozziniFreire Advogados, Renata Emery, é preciso olhar os tributos de maneira agregada. “É preciso enxergar tudo de forma engoblada. Nunca olho apenas para a empresa, mas olho também para o sócio. Eu posso ter dez empresas em cadeia mas, na ponta, alguma hora, vai ter que ter uma pessoa física”, disse. Segundo a Receita, quase todos os países adotam a tributação na distribuição dos dividendos, especialmente no caso de beneficiária pessoa física. Dentre os países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), só dois países adotam sistema semelhante ao do Brasil, ou seja, não tributam a distribuição de lucros ou dividendos. “A atual isenção concedida ao recebimento de dividendos tem gerado distorções jurídicas e econômicas além de uma percepção de tratamento tributário desigual face aos rendimentos do trabalho”, afirmou o Fisco. Entre as outras medidas propostas que impactam diretamente pessoas jurídicas, a reforma entregue por Guedes também pretende pôr fim à dedução atualmente prevista para a distribuição de JCP (Juros sobre Capital Próprio), usado por empresas listadas na Bolsa de Valores. A distribuição de JCP é uma forma de a empresa remunerar seus acionistas. Atualmente, a companhia que distribui JCP pode abater essa despesa do IR, diminuindo o montante a ser pago como imposto. Com a nova proposta essa dedução deixa de existir. Para Emery, a proposta tem diferentes impactos a depender do tamanho da empresa e até mesmo do setor no qual ela atua. “Tudo isso impacta muito nas operações societárias, no planejamento das empresas. Se essa proposta for aprovada como está hoje, vai ser uma mexida muito grande para as companhias e não tende a ser positiva”, disse. Ainda segundo Emery, a proposta também traz um aumento de tributos através do aumento da base de impostos. “O texto traz algumas indedutibilidades [tira a possibilidade de dedução de alguns tópicos] e isso aumenta a base de imposto cobrado. As pessoas costumam olhar para a alíquota, mas ela é só um percentual sobre a base. Se a base cresceu, eu também estou pagando mais impostos”, completou a advogada da TozziniFreire Advogados. Segundo a Receita, a previsão de indedutibilidade de alguns valores na apuração do lucro tributável tem o objetivo de aperfeiçoar a legislação tributária e corrigir distorções pois são deduções sem propósito econômico comprovado. “Entende-se que as medidas propostas, ao reduzir a alíquota do imposto sobre a renda da pessoa jurídica e tributar a distribuição de dividendos, estimulam a eficiência econômica e alinham a legislação brasileira aos países mais desenvolvidos, o que gera um ambiente de negócios mais propício para ao investimento nacional, e estrangeiro, e à geração de empregos”, disse o órgão em nota. A expectativa do governo é que a proposta seja aprovada o quanto antes e já comece a valer a partir do ano que vem. “ Para mudar para o ano que vem, a proposta precisa passar ainda este ano”, disse o sócio da Candido Martins Advogados, Alamy Candido. “E para passar esse ano, o pessoal tem que rodar muito rápido. Para valer a partir do primeiro dia de janeiro, por exemplo, essa aprovação precisa acontecer até setembro, no máximo. Acho que ainda existe uma dificuldade política, mas vamos ver como as coisas vão caminhar”, completou. Segundo a Receita, a expectativa é que as medidas entrem em vigor em 1º de janeiro de 2022. “Entretanto, sua aprovação depende do ritmo de votação do Congresso Nacional”, disse. Procurado, o Ministério da Economia não respondeu até a conclusão desta reportagem. FOLHA DE S. PAULO
Reforma tributária foi pensada, em especial, para agradar ao eleitor de classe média (Adriana Fernandes)
A proposta de reforma do Imposto de Renda anunciada na sexta-feira, 25, pela equipe econômica avança no sentido correto, ao reintroduzir a tributação de lucros distribuídos e reduzir simultaneamente o IRPJ, mas ficou capenga por não prever a criação de uma alíquota mais alta de IRPF e manter uma faixa de isenção elevada para os dividendos das micro e pequenas empresas. Com as mudanças propostas, a carga tributária máxima sobre os lucros das grandes empresas (somando IRPJ e IRPF) se aproximará de 43%, bem acima da alíquota máxima aplicável aos salários (27,5%), mas isso não eliminará o incentivo à pejotização dos profissionais liberais de classe média alta, que continuarão desfrutando de uma grande faixa de isenção, de R$ 240 mil anuais, ou R$ 20 mil por mês. A pejotização continuará vantajosa (em comparação ao regime assalariado) para profissionais que ganham até R$ 40 mil mensais, segundo especialistas em tributação de dividendos ouvidos pela coluna. Apenas acima desse valor de renda mensal a tributação sobre dividendos tornará mais cara a prestação de serviços por meio de uma PJ. Para grandes empresários, a carga tributária sobre o lucro vai crescer significativamente com o retorno da tributação sobre dividendos, pois a queda do IRPJ será pequena e, em muitos casos, anulada pelo fim dos Juros sobre Capital Próprio. Por isso, a reação negativa do setor empresarial, que reclama que o retorno do capital investido em atividade produtiva vai ser tributado a uma alíquota mais gravosa até do que o ganho obtido com capital especulativo em operações como day trade. Hoje, a carga tributária efetiva sobre o lucro de uma grande empresa se situa em média em torno de 28% e, com o retorno da tributação dos dividendos, ultrapassará a casa dos 40%. Um empresário que tem um lucro de R$ 1 milhão por mês, por exemplo, que hoje paga de IRPJ/CSLL cerca de R$ 280 mil mensais, poderá passar a pagar, incluindo o IRPF sobre dividendos, R$ 432 mil mensais. Um acréscimo significativo, que chama a atenção que tenha sido estipulado por uma equipe constituída predominantemente por economistas ultraliberais comandas por Paulo Guedes. Na prática, é provável que as grandes empresas passem a limitar a distribuição de dividendos aos seus sócios ou aprofundar as estratégias de planejamento tributário e sucessório para fugir da maior oneração, avaliam. A Receita está atenta a esse problema e está propondo algumas alterações na legislação para inibir a “distribuição disfarçada” de dividendos. A reforma tributária também vai reduzir em tese o Imposto de Renda pago pela classe média com a correção da tabela de IRPF. O ganho dos assalariados com renda acima de R$ 6 mil mensais será de aproximadamente R$ 142 mensais ou R$ 1,7 mil anuais. Se esse assalariado estiver utilizando hoje as deduções da declaração simplificada, que serão mantidas apenas para assalariados com renda mensal inferior a R$ 3,3 mil, o resultado pode ser diferente: aumento de carga tributária. Principalmente se esse assalariado não tiver muitas despesas com plano de saúde para abater pelo sistema de declaração completa. A reforma exigiria – para não gerar distorções – uma redução maior do IRPJ e a criação de uma alíquota maior do IRPF, de modo a manter um alinhamento entre a tributação máxima das rendas do capital e do trabalho. Além disso, não havia razão para manter uma isenção tão alta para dividendos pagos por pequenas empresas. “Existem pequenos poupadores com ações de grandes empresas e donos de pequenas empresas bastante ricos”, diz o economista Sérgio Gobetti, que publicou estudo de referência nessa área. Logo, ou não deveria haver nenhuma isenção, ou a faixa de isenção deveria (ser menor e) valer para todos. Mas, aparentemente, as mudanças foram pensadas principalmente para agradar ao cidadão de classe média, que representa parte expressiva do eleitorado e com muita influência na formação de opinião. Eleição ditando os rumos das mudanças tributárias. *É REPÓRTER ESPECIAL DE ECONOMIA EM BRASÍLIA O ESTADO DE S. PAULO
‘Proposta de tributação é populista e compromete longo prazo’, diz Bernard Appy
O economista Bernard Appy, fundador do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF) e uma das cabeças por trás da reforma tributária vista na PEC 45, classifica as atuais mudanças anunciadas pelo Ministério da Economia como “populistas” e com viés eleitoral. Para ele, há coisas boas no anúncio da equipe do ministro Paulo Guedes, mas que possuem “erros clássicos de desenho tributário”. Segundo Appy, a proposta nem sequer poderia ser considerada uma reforma tributária, pois não tem o potencial de ampliar o ritmo de crescimento do País. “A minha visão é que as propostas têm um efeito eleitoral positivo, mas são ruins para o crescimento de longo prazo”, diz Appy. A seguir, os principais trechos da conversa. Como o sr. avalia as propostas de mudanças tributárias anunciadas pelo governo?Existem coisas boas na proposta do governo, mas o desenho geral é bastante negativo. O que tem de bom são as mudanças nos tributos sobre aplicações financeiras, que vão na direção correta. Mas, ao mesmo tempo, faltou incluir CRI, CRA, LCI e LCA, e isso claramente foi uma decisão política. A minha visão é que as propostas têm um efeito eleitoral positivo, mas são ruins para o crescimento de longo prazo. Há uma visão eleitoreira na proposta?O aspecto populista é evidente no reajuste na tabela (do IR). É uma medida eleitoral. Em contrapartida, as mudanças, principalmente para as grandes empresas, tornarão o investimento no Brasil menos atraente. E isso tanto para os brasileiros quanto para os estrangeiros. A calibragem foi pesada para as empresas, pois vão reduzir o Imposto de Renda e aumentar na distribuição de lucros, que é uma ideia positiva, mas não foi bem calibrado. Por que a proposta do governo não vai na direção correta?As empresas estrangeiras utilizam muito os juros sobre o capital próprio. Acredito que, com as mudanças, vai ficar mais oneroso para todos. A alíquota média sobre o lucro distribuído nos países da OCDE é de 42%. No Brasil, esse número era de 15% no caso dos juros sobre capital próprio e até 34% sobre o restante. Agora, com as mudanças propostas, vai para 43%. É mais do que a média da OCDE. A calibragem vai ser mais onerosa, e em um momento de guerra tributária internacional, ainda que parcialmente moderada pelas ações do presidente americano Joe Biden. O sr. enxerga distorções na proposta?A tributação das pessoas jurídicas que prestam serviço como sócios de empresas precisaria ser corrigida. Mas, de novo, a forma como o governo escolheu vai gerar muita distorção. Eles colocaram uma alíquota muito alta, de 20%, mas o lucro distribuído aos sócios de empresas com receita até R$ 4,8 milhões por ano é isenta até R$ 20 mil por mês. Para uma pessoa que trabalha nesse sistema e tem poucos custos, se ganhar R$ 20 mil em lucro presumido, vai pagar 7,5% de imposto. Enquanto isso, um empregado comum está pagando 27,5% por esses mesmos R$ 20 mil. Quais os efeitos que isso pode gerar?Como eles colocaram esse limite de R$ 4,8 milhões, todos vão se organizar para entrar nesse limite de faturamento. A empresa que chegar a uma receita próxima desse valor, vai deixar de produzir para não pagar mais imposto. É um erro clássico de desenho tributário. Ou as empresas vão deixar de produzir ou vão se fragmentar. O efeito disso é a economia se organizar de maneira menos eficiente. Qual a sua visão sobre a permissão do governo para atualizar o valor dos imóveis na declaração do IR?Eu considero isso uma pedalada. Você teria uma receita de ganho de capital entre 15% e 22,5% e vai arrecadar 5%. Isso é para arrecadar receita e tem cara de pedalada. O governo fez isso para fechar as contas em 2022 e 2023. Você sacrifica o longo prazo pelo curto prazo. Como enxerga as discussões sobre unificação de impostos?Vamos ver como vai andar no Congresso. A sinalização do Arthur Lira (presidente da Câmara) é de levar a unificação do PIS e da Cofins e o Imposto de Renda sem discussão. Isso realmente não é a realização de uma reforma com seriedade. Se queremos discutir uma mudança profunda e seus efeitos, não pode ser feito sem passar por uma análise. Estamos perdendo a oportunidade de unificar mais impostos?Obviamente, seria muito melhor do que investir na unificação somente do PIS e da Cofins. Até poderia ser da atual forma, se houvesse uma proposta de transição com todos os outros. Que fosse um imposto federal e outro subnacional e com uma transição mais rápida. Porém, essa atual proposta da CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços) pode gastar o capital político sem fazer uma reforma ampla e pode até prejudicar uma reforma mais ampla no futuro. A proposta do governo pode ser considerada uma reforma?Eu não classificaria como uma reforma. Certamente, a proposta não atende ao objetivo de melhorar o potencial do crescimento do Brasil. Ela vai em direção oposta. Não é um bom desenho. O ESTADO DE S. PAULO
Quando o contribuinte tem razão (Editorial)
Em evento virtual promovido pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (Progressistas-AL), fez uma exposição sobre as incertezas jurídicas causadas pela legislação dispositiva no campo do direito tributário, que é editada sob a forma de portarias, resoluções e instruções normativas por órgãos do segundo escalão da administração pública, como é o caso da Receita Federal. O que motivou essa discussão foram as dúvidas da entidade com relação à reforma tributária e à promessa do Ministério da Economia de divulgar prontamente o projeto que altera o imposto das pessoas jurídicas. Esse é um tema de grande interesse do empresariado, que há muito tempo reclama de mudanças abruptas na regulamentação das leis tributárias e reivindica mais segurança jurídica para investir no País. Tanto os empresários da Fiesp quanto o presidente da Câmara dos Deputados concentraram a atenção no modo como a Receita se acostumou a atuar, especialmente na regulamentação das leis que regem a cobrança do Imposto de Renda das pessoas físicas e jurídicas. Segundo os empresários, quando discorda do teor de determinadas leis aprovadas pelo Congresso, a Receita se vale da regulamentação para reformulá-las. Algumas vezes o órgão também interpreta as leis tributárias de modo muito amplo, criando com isso uma jurisprudência contrária aos objetivos e motivações dos legisladores. Outras vezes inclui centenas e até milhares de dispositivos nas resoluções e nas portarias, instituindo uma legislação paralela à legislação tributária votada pelo Congresso. Por isso, quando as empresas calculam o Imposto de Renda que têm a pagar em cada exercício com base na legislação oficial, desprezando essa legislação paralela, acabam sendo autuadas. Se recorrerem ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, serão quase sempre derrotadas. Já se recorrerem à Justiça têm oportunidade de saírem vitoriosas, mas isso exige a manutenção de um custoso departamento integrado por contadores e advogados. Em sua intervenção no evento da Fiesp, o deputado Arthur Lira afirmou estar consciente de que a Receita nem sempre é fiel ao que as leis tributárias dizem. “A Receita Federal não pode e não vai continuar com o poder de regulamentar, de soltar resoluções e de legislar em cima da legislação tributária. Não se pode baixar duas mil, três mil resoluções a cada ano, o que enlouquece o contribuinte”, disse o presidente da Câmara. Segundo ele, é inadmissível que as empresas gastem com assessoria jurídica para não serem autuadas num ano sendo que essas resoluções acabam sendo alteradas no ano seguinte. As críticas de Lira são endossadas pela Frente Parlamentar Mista de Reforma Tributária, cujos líderes afirmam que, se o Legislativo não detiver a tendência da Receita Federal de “criar ordens e legislar”, a área jurídico-fiscal do País se converterá num “manicômio tributário”. Para esses líderes, o máximo que a Receita tem de fazer é fiscalizar e cobrar. Na mesma linha, o deputado Arthur Lira disse que, quando votar a reforma tributária, a Câmara aprovará um dispositivo que proibirá o órgão de sobrepor resoluções e portarias às normas tributárias, afrontando o princípio da hierarquia das leis. Como era de esperar, as entidades sindicais dos fiscais e auditores reagiram imediatamente. Para o Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal (Sindifisco), os órgãos públicos têm o poder e o dever de fazer a regulamentação das leis aprovadas em suas respectivas áreas de atuação. Para a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Unafisco), se fizer o que prometeu, o presidente da Câmara estará cometendo um equívoco. Isto porque, sem uniformidade interpretativa, cada auditor entenderá a legislação a seu modo, aumentando ainda mais a insegurança jurídica. Dada a histórica tendência de fiscais e auditores da Receita de exorbitar no uso de prerrogativas, esses argumentos corporativos são inconvincentes. Nessa discussão proposta pela Fiesp, é claro que o contribuinte tem razão. O ESTADO DE S. PAULO
Mulheres são mais impactadas na crise
Menos de dois meses após a declaração de pandemia por covid-19, ocorrida em 11 de março de 2020, a copeira hospitalar Maria Helena da Silva, de 54 anos, perdeu o emprego. Um ano depois, seu sustento e o da filha de 20 anos dependem de bicos, uma bolsa de R$ 700 mensais recebida pela jovem no estágio profissional e doações de cestas básicas. “Quando ela recebe (a remuneração), a gente compra uma mistura (carne), mas a mais em conta. Tem que ser um acém, uma salsicha, uma linguiça. E depois vai alternando sardinha em lata com ovo”, conta ela, que é moradora de Heliópolis, uma das maiores favelas da América Latina. A perda do salário de R$ 1,3 mil mensais nunca foi recuperada. Maria Helena chegou a receber uma parcela do seguro-desemprego, mas abandonou as outras quatro prestações diante da animação de conseguir uma recolocação tão rápida. Não deu certo, e a nova dispensa veio poucos dias depois do registro. Com esse vaivém, ela também ficou sem acesso ao auxílio emergencial, criado no ano passado para ajudar aos vulneráveis. Neste ano, o governo não abriu novo cadastro. A dificuldade de Maria Helena é o retrato particular de uma realidade que espreita um sem-fim de famílias brasileiras, num cenário de desemprego elevado e uma rede de proteção social ainda insuficiente para cobrir todos os problemas. Um estudo do Núcleo Mulheres e Território, do Insper, busca jogar luz sobre os reflexos da pandemia sobre as mulheres que vivem nas comunidades. Conduzido pelos pesquisadores Eliana Sousa Silva, Regina Madalozzo e Sergio Roberto Cardoso, o estudo analisa entrevistas com 150 moradoras do Complexo da Maré, no Rio, e em Heliópolis e Jardim Colombo (que faz parte de Paraisópolis), em São Paulo. Os questionários foram aplicados por moradoras das próprias comunidades, sob orientação dos autores. Embora a quantidade de entrevistas não permita tirar conclusões estatísticas para o restante da população, as situações encontradas ajudam a dimensionar o tamanho da crise e o desafio daqui para frente. Antes da pandemia, as mulheres exerciam, em geral, funções como doméstica, cabelereira, professora e vendedora, postos mais vulneráveis no mercado de trabalho em relação aos ocupados por homens. Com o distanciamento social e sem a possibilidade de trabalho remoto, as entrevistadas tiveram horas de trabalho reduzidas ou foram demitidas – muitas vezes antes de seus companheiros. A perda de renda levou à suspensão de gastos com lazer e delivery de comida. Não raro, contas atrasaram. O jeito encontrado foi recorrer a atividades informais, como costurar e vender máscaras, ou produzir alimentos, como bolos e cupcakes. Uma das autoras da pesquisa, a professora Regina Madalozzo diz que o trabalho busca qualificar melhor a sobrecarga das mulheres durante a pandemia de covid-19. Segundo ela, o debate ficou concentrado nas profissionais que foram para o home office e tiveram que equilibrar o trabalho com tarefas domésticas e filhos em idade escolar com aulas remotas, mas menos em mulheres que saíam de casa para atuar como manicures ou domésticas. O objetivo foi dar voz a esse segundo grupo. “Parece assim: o vírus se espalhou, as empregadas não puderam mais ir para a casa das pessoas, e pobre das mulheres brancas que ficaram em casa fazendo o trabalho (doméstico). Mas vamos ver o que aconteceu com essas mulheres que não puderam mais ir, do que elas também estão reclamando. A vida delas está mais tranquila? Elas são uma parte bem substancial da população, já não tinham apoio para o trabalho doméstico e ficaram sem uma série de outros apoios, inclusive financeiro”, afirma Madalozzo. Segundo ela, muitas mulheres pediram e receberam o auxílio emergencial, mas é um mito que isso tenha levado a uma acomodação. “Nenhuma desistiu de trabalhar ou procurar emprego por causa do auxílio. É um valor que não é suficiente para sustentar uma família”, diz. Para a pesquisadora, a demissão das mulheres em si não é uma questão de gênero de forma direta, mas sim indireta, porque elas ocupam os postos mais vulneráveis de trabalho, geralmente no setor de serviços, o mais atingido pela pandemia. No ano passado, enquanto se abriram 195,3 mil novas vagas formais para homens, foram fechados 114,2 mil postos ocupados por mulheres, segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged). Um dos achados do estudo foi a preocupação das mulheres com a contaminação pelo novo coronavírus, e também a percepção de que perdiam o emprego pelo medo dos patrões de elas levarem covid-19 para dentro de suas casas – e não por estarem mais vulneráveis. Maria Helena relata a dificuldade para conseguir trabalho por causa do medo da contaminação. “Está difícil porque o povo tem medo que a gente ande de coletivo e passe para eles o vírus”, conta. Diabética e hipertensa, já está vacinada contra covid-19, mas nutre ela mesma o temor de voltar a trabalhar em áreas de muita exposição, como seria uma ala hospitalar. Mesmo assim, Maria Helena fez algumas seleções, ainda sem conseguir voltar à ativa. Enquanto isso, seus outros dois filhos já casados tentam ajudar com as contas, equilibrando com suas próprias dificuldades. Ela vive dos poucos bicos como faxineira ou passando roupas e luta para fugir da barganha na hora do pagamento, pois qualquer centavo faz a diferença. “A comida que eu consigo comprar é insuficiente, porque a mistura tá muito cara. Tenho ajuda de uma cesta básica, um mês sim e um mês não. Se eu já recebi um, eu tenho que deixar para quem precisa”, afirma Maria Helena. No Cine Favela, ela conta que pode pedir bolachas a cada 15 dias. “Mas não tenho nenhum menino pequeno, aí fico com vergonha.” Nas últimas semanas, a moradora de Heliópolis tem saído para fazer testes e entregar currículos. Nas seleções para copeira hospitalar, chega a entregar meio período de trabalho, sem nenhuma remuneração e sem qualquer aceno concreto de emprego. “Não ganha nada, só promessa.” O ESTADO DE S. PAULO
A volta da inflação, no mundo e no Brasil (Claudio Adilson Gonçalez)
Os profissionais que ingressaram no mercado financeiro nos últimos 20 anos não conviveram com episódios inflacionários no mundo desenvolvido. Muitos até chegaram a acreditar que a inflação estaria morta ou pelo menos fora de moda, assim como as calças boca de sino ou as discotecas, símbolos dos anos 70 do século passado. Mas é preciso cuidado. Como na moda, o vaivém também ocorre em economia. Os dois choques do petróleo, em 1973 e 1979, levaram a variação anual do índice de custo de vida norte-americana (CPI) para patamares de dois dígitos, com rápido e intenso repasse para os demais preços da economia. Foi preciso um draconiano choque de juros, promovido por Paul Volcker, que presidia o Fed (o banco central dos Estados Unidos), desde outubro de 1979, para debelar a situação. Mais uma vez ficou claro que, quando instigada, a inflação reage, e o remédio monetário, por mais amargo que seja, torna-se inevitável. No entanto, desde o início deste milênio, principalmente depois da grande crise financeira de 2008, os bancos centrais dos países desenvolvidos lutam para evitar a deflação, ou a inflação muito baixa. Isso pode estar mudando. A proposta orçamentária de Joe Biden prevê déficits que podem chegar a 16,7% do PIB, neste ano fiscal (até o final de setembro), e a 7,8% no próximo exercício, com a política monetária ainda em fase expansionista. Se levarmos em conta que a recuperação da recessão causada pela covid-19 está sendo uma das mais rápidas e intensas já registradas na história dos ciclos econômicos norte-americanos, esses estímulos podem ser demasiados. Mas há também mudanças estruturais, que, embora seja difícil prever quando começarão a pressionar a evolução dos preços nos países desenvolvidos, certamente já não estão mais ajudando a manter as taxas de inflação historicamente baixas. O excelente livro The Great Demographic Reversal, de Charles Goodhart, ex-membro do Comitê de Política Monetária do Banco Central da Inglaterra, alerta para essa questão. Para Goodhart e coautores, dois fatores foram determinantes para a recente era de inflação muita baixa: a) o grande aumento, propiciado pelo baby boom do pós-guerra, da população em idade ativa (15 a 64 anos), verificado nas economias globalizadas (países de alta renda, mais a China), intensificado a partir dos anos 90 com a integração da antiga União Soviética e da própria China no comércio internacional; e b) o aprofundamento da globalização, que levou à exportação de deflação, da Ásia e do Leste Europeu, na forma de mão de obra barata, para o resto do mundo. Essas duas situações estão se invertendo. A população ativa nas economias globalizadas começará a cair a partir de 2021, e a taxa de dependência, ou seja, a relação entre os inativos e os habitantes totais, que atingiu seu mínimo em 2010 (42%), já começou a se elevar rapidamente, devendo alcançar 60%, em 2035. A globalização, por sua vez, tende a se reduzir gradualmente, menos pela xenofobia e mais por razões estratégicas. Isso deverá provocar pressões nos custos salariais e na inflação, segundo Goodhart. Claro, os bancos centrais dos países desenvolvidos terão que reagir. Se esse cenário se concretizar, haverá efeitos nocivos para o Brasil. No curto prazo, nem todos os aumentos de preços de insumos já foram incorporados no varejo. Se os juros internacionais subirem além do esperado, a recente apreciação cambial poderá ser revertida e isso trará novos desafios para as políticas monetária e fiscal. Estou tranquilo quanto à determinação do Banco Central em manter a inflação dentro das metas. Mas a gestão da política fiscal não inspira confiança. E isso poderá piorar se Bolsonaro tentar comprar sua reeleição desorganizando ainda mais as contas públicas. *ECONOMISTA E DIRETOR-PRESIDENTE DA MCM CONSULTORES. FOI CONSULTOR DO BANCO MUNDIAL, SUBSECRETÁRIO DO TESOURO NACIONAL E CHEFE DA ASSESSORIA ECONÔMICA DO MINISTÉRIO DA FAZENDA O ESTADO DE S. PAULO
Geração Z também quer mudar o mundo pelo mercado de trabalho
A estudante Júlia Silva, de 20 anos, não quer só um trabalho que lhe dê dinheiro. Para ela, é importante ter também um propósito maior na vida. “Minha formação foi nos movimentos sociais, então sempre tive discussões sobre feminismo, racismo e questões LGBT. É até estranho pensar que isso não era discutido antes.” O perfil da moradora de Guarulhos, na Região Metropolitana de São Paulo, não é exceção. Os integrantes da chamada Geração Z – nascidos entre 1995 e 2010 – também querem mudar o mundo pelo mercado de trabalho. “Os valores são algo muito importante para eles, tanto no consumo quanto para escolha de carreira”, explica Renata Rivetti, diretora e fundadora da Reconnect, empresa especializada em felicidade corporativa. Esses jovens são mais práticos do que a geração anterior, os millennials ou Geração Y – nascidos entre 1980 e 1994. “Os millennials ficavam muito no campo das ideias, focados no ‘eu’. Já a Geração Z é mais do diálogo, de ouvir diferentes opiniões e tomar decisões de forma aberta”, diz Renata. Nos últimos dias esse conflito entre as duas gerações, em tom de brincadeira, veio à tona por meio das redes sociais. Os jovens da Geração Z começaram a elencar práticas dos millenials que eles julgam como “cringe”, termo utilizado para definir algo constrangedor (ou “vergonha alheia”). Júlia Silva conta que não enfrenta tanta dificuldade em lidar com a geração anterior, mas não lida muito bem com as outras duas gerações: os Baby Boomer (nascidos de 1940 a 1959) e a Geração X (de 1960 a 1979). “Parece que, quanto mais a pessoa envelhece, tem mais dificuldade de absorver informações da galera mais nova. É bem complicado discutir. Então, a forma de lidar é não falando sobre o assunto”, assume. Renata Rivetti sugere que a Geração Z tenha mais paciência. “Buscar equilibrar essa autonomia tendo que ceder um pouco, entendendo que outras gerações precisam de um trabalho mais cuidadoso. Alcançar os objetivos sem tanto imediatismo.” Qualificação, oportunidades e dificuldadesJúlia Silva, que estuda Letras, ainda está no primeiro semestre da faculdade e, portanto, achar um estágio na área é difícil. Restou procurar o trabalho “mais fácil para sua idade”, como mesmo define, para conseguir ajudar em casa e conquistar mais liberdade financeira. Não tem sido fácil. “É difícil porque é cobrada experiência e eu não tenho. Estou procurando desde o início do ano. Vou a cerca de quatro entrevistas por semana, fora os currículos que envio para outras vagas que nem me chamam”, lamenta. Na avaliação de Elcio Paulo Teixeira, CEO da Heach Recursos Humanos, empresa de recrutamento e seleção, o mercado de trabalho ainda não está preparado para receber trabalhadores da Geração Z. Quer debater assuntos de Carreira e Empreendedorismo? Entre para o nosso grupo no Telegram pelo link ou digite @gruposuacarreira na barra de pesquisa do aplicativo“O contratante muitas vezes busca alguém que queira permanecer na mesma posição performando. O jovem é inquieto, quer dar resultado e ser reconhecido por isso. As empresas acabam doutrinando esse jovem e ele acaba migrando de empresa para empresa”, afirma o especialista. Por outro lado, ele reconhece que a Geração Z tem habilidades que são únicas, como a facilidade para se trabalhar com https://sindeprestem.com.br/wp-content/uploads/2020/10/internet-cyber-network-3563638-1.jpg e inovação, além de ter soft skills (habilidades comportamentais) como análise crítica e pensamento ágil. “Os treinamentos precisam ser adequados para o nível de experiência”, completa Elcio. Para Martin Casaccia, CMO da Workana, marketplace que conecta freelancers a empresas, o RH deve se preocupar também com a divergência entre gerações. “O RH das empresas e os gestores precisam entender as características e necessidades de cada geração e equilibrá-las para que a convivência seja saudável e proporcione o desenvolvimento dos profissionais. É preciso identificar os pontos fortes de cada um e somar esses pontos aos dos demais”, diz. Humor no conflitoA atriz Vicka Matos, de 26 anos, viu no TikTok a oportunidade de pautar a discussão entre gerações de uma forma bem humorada. Com vídeos onde interpreta um integrante de cada grupo geracional, a baiana que mora em São Paulo tem se destacado na plataforma. E faz questão de ressaltar seu time: completa 27 anos em setembro, portanto, é millennial. “Acho que nós não conseguimos admitir que estamos ficando velhos. Aí, essa não aceitação com a chegada da maturidade faz com que a gente tenha esse impulso de criticar o comportamento dos mais jovens, mas temos que confiar neles”, analisa. O primeiro vídeo publicado por Vicka sobre o assunto, em 20 de fevereiro, alcançou 76 mil visualizações, o que chamou a atenção da atriz, já que destoa da maioria. Um novo vídeo chegou a 180 mil visualizações e um dos mais recentes foi visto 273 mil vezes. Diretora de Recursos Humanos da Avon Brasil, Daniella Moura afirma que a divergência entre as gerações faz parte do mercado de trabalho e avalia como uma excelente alavanca para estimular a diversidade e a inovação na empresa. “As trocas entre as gerações são muito valorizadas na Avon, e uma das características dos colaboradores é abrir espaço para o compartilhamento livre de preconceitos, estigmas e ego. Também entendemos a importância de nossos estagiários e trainees terem mentores, além de gestores, que os ajudem a equilibrar as expectativas diante das possíveis dificuldades e choques de geração”, diz. Daniella Moura avalia que a campanha da marca durante o Big Brother Brasil, na TV Globo, foi bem recebida nas redes sociais justamente por ter sido planejada por trabalhadores de diferentes gerações. “A Geração Z tem muito bem definido o cenário de mundo ideal: equitativo, justo, diverso e sustentável – e eles trabalham por isso”, completa a diretora. O ESTADO DE S. PAULO
Sim, a competência é da Justiça do Trabalho (Olga Vishnevsky Fortes)
A Justiça do Trabalho está diminuída. Estamos perdendo nossa competência e isso é um fato inegável. Não entremos na seara política ou ideológica para discutirmos o tema, pois acho que um dos problemas é justamente esse, colocar a política – e aqui não falo do conceito clássico da palavra -, onde ela não deveria estar como protagonista de decisões que deveriam ser precipuamente técnicas. Antes da Emenda Constitucional (EC) nº 45, de 2004, o “caput” do artigo 114 da Constituição Federal dizia que a Justiça do Trabalho era competente para “conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta dos municípios, do Distrito Federal, dos Estados e da União, e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas”. A EC 45 aumentou a competência da Justiça do Trabalho ao dispor, na nova redação do artigo 114, que compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: as ações oriundas da relação de trabalho, as ações de indenização por dano moral ou patrimonial decorrentes da relação de trabalho e outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei. A doutrina e a jurisprudência foram, à época, uníssonas quanto ao hialino aumento da competência da Justiça do Trabalho. A competência precípua para conciliar e julgar dissídios relativos às relações de emprego passou a se referir, por mais de uma vez, às relações de trabalho. E qual seria a diferença? A relação de trabalho é mais abrangente que a de emprego porque se refere a todo trabalho desenvolvido por uma pessoa humana em benefício de outra ou de uma empresa. Não se exige que haja subordinação na relação de trabalho, mas a prestação de serviços – trabalho humano -, e a tomada desses, mediante remuneração. Diferentemente da relação comercial, em que duas empresas possuem a organização dos fatores de produção e negociam entre si e em igualdade de condições para produzir e fazer circular bens e serviços, a relação de trabalho envolve em um dos polos a pessoa, que oferece sua força de trabalho e, em razão disso, necessita estar sob o manto dos princípios do direito do trabalho. Isso não quer dizer que o trabalho humano prestado por meio de um contrato válido haverá de ser sempre regulado pela CLT, mas pela própria lei especial, que discorre sobre a tipicidade da contratação, como ocorre, por exemplo, nos contratos de aprendizagem, de estágio, do trabalhador portuário não empregado e do representante comercial. Na ausência de lei especial, a prestação será analisada à luz do Código Civil, como permite, de forma expressa, o artigo 8º, parágrafo 1º, da CLT. A escolha do legislador constituinte derivado foi no sentido de emprestar às relações de trabalho um necessário equilíbrio de forças, tal qual ocorre nas relações de consumo e de emprego. Ocorre que em recente decisão no RE 606003, o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu não haver relação de trabalho entre representante comercial autônomo e representada, mas relação comercial. E, portanto, a competência para ação promovida para pleitear direitos do representante seria da Justiça Comum. Creio que houve um julgamento de mérito da relação quando a questão deveria estar adstrita ao pressuposto processual de validade da competência. Há na decisão alguns pontos de necessária abordagem. Quando me referi ao contrato válido de prestação de serviços havido em uma relação de trabalho, levei em conta a causa de pedir – fatos e fundamentos do pedido -, de um representante comercial que litiga para pleitear direitos oriundos do contrato de representação. O juiz do trabalho, com a competência material que lhe foi concedida pela EC 45, apreciará o pedido aplicando a Lei nº 4886, de 1965, sempre mediante ao princípio da primazia da realidade, que nos faz ver além da prova meramente documental, que é de produção ou de titularidade da parte mais forte da relação. Se, no entanto, a causa de pedir se referir a fraude contratual e ao pedido de reconhecimento de vínculo de emprego pela subordinação, o juiz do trabalho, com a mesma competência material que lhe foi concedida pela EC 45, apreciará o pedido e, reconhecendo o vínculo, aplicará a CLT. Afastando-o, poderá apreciar pedido alternativo relativo ao contrato de representação, ou na ausência dele, julgará improcedente o vínculo. Também nessa hipótese há a aplicação do princípio da primazia da realidade. E qual a razão de se observar a causa de pedir nas duas hipóteses? Porque é ela que define a competência, exemplo contido na Súmula 736 do STF. Mas, de se observar que no caso do representante comercial, em qualquer das hipóteses a relação de trabalho define a competência da Justiça do Trabalho. Não há, então, hipótese jurídica viável de desconsiderar a causa de pedir – e isso se infere da mencionada decisão sumulada pelo próprio STF -, para a definição de competência, mormente quando a decisão faz a sobreposição de uma relação negocial formal para obliterar a relação de trabalho constitucionalmente reconhecida. Não há, outrossim, como definir a competência da Justiça Comum para apreciar os pedidos antes que a Justiça do Trabalho o faça, pois a competência material da primeira é residual e da segunda é especial. É comezinho na definição da competência que se verifique, por primeiro, se a competência material é da Justiça Especializada para, em sendo negativa a resposta, se definir pela competência da Justiça Comum. O caminho inverso é contrário à toda e qualquer doutrina sobre o tema. A Justiça do Trabalho é especializada, possui princípios próprios, e seu processo, ao contrário do que acontece com outros ramos do Judiciário, envolve dezenas de pedidos feitos em cada ação. Há que se reconhecer a nossa competência. Em todos os sentidos. Olga Vishnevsky Fortes é juíza titular da 7ª Vara do Trabalho de São Paulo, presidente em exercício da Associação Brasileira de Magistrados do Trabalho (ABMT), pós-graduada em Processo Civil pela FMU e
Dívida trabalhista da Petrobras vai a R$ 46bi
Passados três anos da decisão que impôs à Petrobras a maior condenação trabalhista da sua história, processo que ainda não teve um desfecho definitivo, o valor estimado pela estatal para corrigir os salários de 51 mil funcionários aumentou 170% em relação à previsão inicial. Dos R$ 17 bilhões calculados em 2018, ocasião da sentença fixada pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST), o montante provisionado exclusivamente para esse fim já havia dobrado em dezembro. Agora, com encerramento do primeiro trimestre, a companhia projeta um desembolso de R$ 46 bilhões. O contingenciamento inclui os riscos remotos, possíveis e prováveis de a Petrobras obter uma decisão judicial definitiva que acabe sendo desfavorável aos seus interesses. O impacto expressivo se deve à tese que prevaleceu no TST: a de que, ao contrário do atualmente praticado pela companhia, os adicionais legais destinados a remunerar condições especiais de trabalho não estão incluídos no cálculo de complemento da política salarial da empresa, ou seja, devem ser pagos à parte. Inicialmente, para estimar o gasto, a companhia considerou apenas o que poderia ser devido aos funcionários a título de adicional de periculosidade. O acórdão do TST, contudo, se mostrou mais amplo, levando a empresa a incluir outras possíveis remunerações extras, como adicional noturno e sobreaviso. A Petrobras apelou ao Supremo Tribunal Federal (STF), mas entraves burocráticos fizeram com que o recurso levasse mais de um ano para chegar ao gabinete do ministro Alexandre de Moraes, sorteado o relator. De posse dos autos desde fevereiro do ano passado, o ministro não analisou nenhuma das quatro petições que, desde então, foram protocoladas pelas partes. A última delas é de 8 de maio de 2020, quando a BR Distribuidora pediu aval do STF para substituir por seguro garantia os depósitos judiciais e recursais feitos no âmbito dos processos relacionados à Remuneração Mínima por Nível e Regime (RMNR), política salarial estabelecida em 2007 por acordo coletivo. Como “empresa-mãe”, a Petrobras já havia feito pedido semelhante – parte de uma estratégia para tentar buscar formas menos onerosas de garantir os pagamentos, em meio à crise decorrente da pandemia. Segundo as companhias, a economia poderia chegar a 97,5% e, com isso, evitar demissões. Mais de um ano depois, as solicitações estão paradas no gabinete do ministro. Nos bastidores do STF, o entendimento é o de que o tribunal precisa primeiro pacificar uma série de temas trabalhistas mais amplos, capazes de interferir diretamente na avaliação do caso concreto. Dois exemplos: a ação que questiona a ultratividade de normas coletivas de trabalho e o agravo por meio do qual se discute o chamado “acordado sobre o legislado” em direitos trabalhistas. Nenhum tem previsão de data para julgamento. Embora não haja perspectiva de um desfecho definitivo, a Corte já proferiu três decisões favoráveis à estatal, mas todas em caráter provisório. Em razão dessas liminares, foram sobrestadas cerca de 45 ações coletivas movidas por entidades sindicais e 7 mil individuais. A suspensão vai perdurar até que estejam esgotados todos os recursos a que a empresa tem direito. Para fixar sua posição definitiva sobre a RMNR, a Corte precisa, inicialmente, declarar a repercussão geral do recurso e, depois, instruir o processo para julgamento de mérito – o que pode levar mais um par de anos. “A lentidão contrasta com a celeridade com que o tribunal concedeu a liminar para paralisar os processos do Brasil inteiro”, afirmou ao Valor o advogado da Federação Única dos Petroleiros (FUP), Normando Rodrigues. A controvérsia em torno do cálculo de complemento da RMNR começou em 2011, quando um servidor da área de Perfuração e Poços entrou com uma reclamação na 2ª Vara do Trabalho de Mossoró (RN). O pedido para que fosse feito o recálculo da sua remuneração foi negado três vezes – pela primeira e segunda instâncias e pela Quinta Turma do TST. A defesa do servidor insistiu na tese até que a o caso foi levado ao plenário da Corte trabalhista. Em 21 de junho de 2018, o processo foi julgado por um colegiado dividido. A condenação da petrolífera só veio na manifestação do 25º ministro, que desempatou o placar. A diferença de apenas um voto criou no governo federal a expectativa de ver a condenação revertida no STF. Por outro lado, um precedente da Corte preocupa os dirigentes da estatal. Em 2015, em outro caso parecido sobre RMNR, o tribunal entendeu que não estava em discussão a constitucionalidade dos pagamentos pelas condições especiais de trabalho – eles seriam feitos de todo modo, incluídos ou não no cálculo do complemento. A questão era meramente sobre uma fórmula matemática, o que afastaria o cabimento do recurso ao Supremo. A Petrobras afirma que “continua atuando na defesa dos seus interesses e acredita no êxito nestes processos”. Auxiliares de Moraes afirmam que o recurso extraordinário “será levado a julgamento o mais breve possível”. VALOR ECONÔMICO
Sequestro de dados de empresas vira joia do cibercrime na pandemia
O trabalho remoto durante a pandemia e a valorização de criptomoedas turbinaram o sequestro de informações sigilosas de companhias e organizações públicas, elevando o chamado ransomware ao posto de ataque mais lucrativo do cibercrime. Neste ano, gigantes como JBS e Colonial Pipeline, a maior rede de oleoduto dos Estados Unidos, foram alvo desse tipo de ação, que consiste em invadir redes corporativas, copiar ou criptografar dados pessoais de funcionários e clientes e pedir um pagamento milionário em bitcoin para não vazá-los na internet. Como o resgate é feito em moedas não rastreáveis, é difícil precisar quanto essa atividade ilegal movimenta por ano. A estimativa para 2020 supera US$ 350 milhões (R$ 1,77 bilhão), de acordo com a Chainalysis, empresa especializada na análise de transações em blockchain, a rede que opera o bitcoin. A relação entre ransomware e o trabalho remoto é que, ao distribuir as pessoas geograficamente, muitas companhias não revisaram protocolos ou instruíram seus empregados sobre segurança digital, permitindo o aumento de brechas de acesso a cibercriminosos. O maior exemplo, alertam especialistas, está em programas que permitem a conexão remota de trabalhadores às suas máquinas corporativas. Qualquer funcionário que utilizar uma senha simples, como 123456, para acessar o computador da empresa pode servir de canal para que um invasor adentre a rede e vasculhe sistemas inteiros da organização. O relatório global Verizon DBIR, um dos mais confiáveis do mercado de segurança digital, que capta dados de múltiplas fontes empresariais e governamentais, mostra que o ransomware responde por 10% dos incidentes cibernéticos. O índice parece baixo, mas chama a atenção sua rápida evolução. Em 2018, o ataque representava menos de 2%. Outro detalhe é que ele é muito mais custoso a uma operação empresarial do que outros tipos de hacking, como o de negação de serviço, por exemplo, que impossibilita o carregamento do site para os clientes. Esse crime tem alvos bem direcionados e visam alto retorno financeiro. A JBS, cujo caso tornou-se público, decidiu pagar US$ 11 milhões (R$ 55 milhões) neste mês para não ter suas informações sensíveis publicadas. Em 2020, o maior pedido de resgate chegou a US$ 30 milhões (R$ 150 milhões), segundo a empresa de cibersegurança Palo Alto Networks. Já a maior quantia desembolsada foi de US$ 10 milhões (R$ 50 milhões), considerando Estados Unidos, Canadá e Europa. Embora a maior parte das organizações opte por não ceder à chantagem, a média estimada de custo envolvendo questões jurídicas e policiais em um incidente do tipo é de US$ 73,8 mil, mais de R$ 370 mil. As companhias americanas, canadenses e europeias costumam estar entre as mais visadas de acordo com relatórios de segurança digital. O Brasil, embora domine outros rankings de crime cibernético, virou um destaque em ransomware durante a crise de Covid-19. Foram atacados o STJ (Superior Tribunal de Justiça), o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, empresas na área de energia e a Embraer, que não pagou aos criminosos e teve documentos como contratos de aviões circulados na internet. A empresa russa Kaspersky, uma das líderes de mercado no país, colocou o Brasil entre as cinco nações mais atingidas por ransomware em 2020. Os chamados ataques de força bruta, quando um hacker usa diversas técnicas para obter a senha de um usuário, subiram 330% no país, com um pico no início da pandemia. Esse aumento tem ligação direta com tentativas de ransomware, pois são o primeiro passo para o acesso a sistemas remotos, segundo Fabio Assolini, pesquisador de segurança sênior da companhia. Só a Kaspersky detectou entre seus clientes brasileiros 4.354 tentativas de ataque no primeiro trimestre deste ano. “O ransomware é tão antigo quanto a história da computação, era distribuído por disquete e tinha de ser pago com cheque. Ele vem se repaginando e começa a atacar infraestruturas críticas à população, como o caso do Pipeline”, diz o especialista. Ele afirma que empresas de energia elétrica no Brasil só não sofreram apagão porque têm a rede distribuição separada da área de https://sindeprestem.com.br/wp-content/uploads/2020/10/internet-cyber-network-3563638-1.jpg da informação. Há cerca de 50 gangues reconhecidas por esse tipo de ataque no mundo, a maioria do Leste Europeu. Os grupos costumam adentrar as redes, estudá-las, verificar as soluções de segurança disponíveis e o valor dos dados. Uma tática comum antes de dar o bote é a criação de uma cortina de fumaça, um incidente menor usado como isca de distração às equipes de segurança. A cada cerco de autoridades, o cribercrime se especializa para manter seus negócios ativos. Nos últimos anos, à medida que o ransomware ganhou mais atenção e rendeu mais dinheiro, as quadrilhas começaram a se ultraespecializar e dividir tarefas em pequenos grupos, o que tem gerado “aumento de produtividade”, segundo Alexandre Sieira, cofundador da Tenchi Security. “Tem gente especializada em varrer a internet em busca de sistemas vulneráveis ou expostos, outro em desenvolver uma solução de ransomware e alugá-la: ‘Quer fazer o ransomware? Ser o cara que entra, criptografa os dados e cobra?’ É como uma franquia, e tem o que faz o equivalente à lavagem de dinheiro com o bitcoin.” Em resumo, vários grupos trabalham de forma simultânea e em larga escala. Além do aumento da ofensiva a companhias lucrativas, da manufatura à saúde, as gangues também têm apostado em governos, a fim de captar informações críticas de áreas da administração pública. Nesse caso, não tentam apenas burlar senhas de VPN, mas enviam phishings (uma isca, por aplicativo ou email, com um código malicioso) e realizam uma série de ataques de negação de serviço. “Essas gangues realizam pesquisas completas para entender quais organizações são as mais vulneráveis e estão dispostas a pagar, e quanto elas podem pagar”, diz Jen Miller-Osborn, diretora na Unit 42 da Palo Alto Networks. Existe até o ransomware como serviço, um modelo baseado em assinatura que permite aos afiliados usarem ferramentas para executar ataques e ganhar uma porcentagem de cada pagamento de resgate bem-sucedido. “Observamos um grupo chamado Prometheus que se refere às suas vítimas como ‘clientes’ e se comunica com elas por meio de um