Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, não houve nenhum projeto de reforma tributária que tenha chegado à fase em que chegaram as PECs 45 e 110, de 2019. Ambas tratam de uma reforma na tributação sobre o consumo, a mais importante e complexa das tributações. Pretendem substituir vários tributos pelo imposto sobre bens e serviços (IBS). A crise econômica do país, agravada pela pandemia da covid19, impõe medidas urgentes que melhorem as contas fiscais. Isso passa por uma modernização do sistema tributário.
Nosso sistema tributário não mais atende aos interesses de uma economia digital e de uma sociedade em acelerada transformação O tema tem gerado uma intensa disputa de protagonismo entre a Câmara dos Deputados, o Senado Federal e o Palácio do Planalto. Os debates devem se intensificar no primeiro trimestre de 2021 e assim devem seguir até o fim do ano. Muitos defendem manter a situação como está. Isto parece incompreensível à luz da enxurrada diária de normas tributárias, do excesso regulamentar, do péssimo ambiente de negócios do Brasil, da complexidade única e do inigualável número de litígios tributários. O FMI e o Banco Mundial não hesitam em atestar que o sistema tributário brasileiro é o que mais afugenta investimentos estrangeiros.
Alguns justificam a resistência nas algemas impostas ao sistema tributário por uma Constituição Federal editada há mais de 30 anos. O fato é que o nosso sistema tributário não mais atende aos interesses de uma economia digital e de uma sociedade em acelerada transformação. Destoa do resto do mundo. Exercita-se a máxima segundo a qual o direito é uma questão de interpretação. Não esqueçamos, todavia, que a interpretação pode “apenas revelar uma cortina de fumaça atrás da qual o intérprete impõem sua própria visão acerca do que lei deveria ter sido” (Dworkin). Os grupos de interesse continuarão agindo em 2021 para garantir privilégios. Isso é legítimo e democrático, embora fosse desejável que a argumentação partisse da premissa de que prosperidade socioeconômica do país a todos beneficiará.
A reforma tributária deve ser debatida sob perspectivas valorativas constitucionais. A racionalidade econômica faz parte inseparável do nosso sistema, assim como nas constituições econômicas desde o início do século XX. As constituições republicanas brasileiras trazem este mesmo racional econômico, especialmente a de 1988. A eficiência – conceito de gênese econômica – vem sendo progressivamente inserida no sistema como conceito jurídico, inclusive como foi de forma expressa na Constituição Federal de 1988. Vale dizer, as normas jurídicas que se demonstram ineficientes por seus resultados, afastam-se do sistema jurídico.
O sistema tributário atual é ineficiente. Não atende os fundamentos e os objetivos da República. Por seus defeitos, não prestigia a dignidade da pessoa humana, a construção de uma sociedade justa e solidária, a garantia do desenvolvimento regional, a erradição da pobreza, a redução das desigualdades sociais e a promoção do bem comum. O Senado Federal é incumbido constitucionalmente de avaliar a funcionalidade do sistema tributário nacional e, ao assim fazer, concluiu que o sistema é desfuncional e, logo, ineficiente. Se é ineficiente, a sua mudança não é opcional. Deve ser modernizado e não se aceitam omissões pelos poderes competentes.
As propostas apresentadas encaminham alternativas. Longe de serem as únicas “donas da razão”, posicionam-se com sólidos fundamentos no centro dos debates. Tem sido municiadas com críticas construtivas (e outras nem tanto), novos estudos técnicos e balisadas opiniões, almejando, senão a inalcansável perfeição, algo muito melhor do que existe. É ganho de eficiência. O que parece refletir na grande parte das justas oposições é a falta de confiança plantada pelos políticos e governantes nas últimas décadas.
Não se critica a substituição dos tributos pelo IBS, mas o receio de que convivam como mais um tributo a ser criado. Não se critica a não cumulatividade ampla, mas o receio de que venha a ser restringida por atos normativos infraconstitucionais, tal como foi com o PIS/Cofins, o IPI e especialmente o ICMS (com créditos amplos adiados para 2033). Não se critica o fim de desonerações fiscais (tal como a cesta básica), mas o receio de que o tributo arrecadado não será transferido aos mais pobres por política de transferência direta ainda a ser criada. Não se critica o fim de benefícios fiscais e a sua substituição por benefícios financeiros aprovados por lei, pois na edição desta lei não se deposita a menor credibilidade. Enfim, os debates temperados por desconfiança, por forte atuação de grupos de interesse, por ambições políticas sempre cheias de irracionalidades, por interpretações jurídicas e críticas econômicas, podem sugerir a aprovação, no ano de 2021, da referidas propostas com algumas flexibilizações.
Talvez a aprovação entre 3 e 5 alíquotas ao invés de uma alíquota uniforme, uma transição mais curta, alguns poucos incentivos fiscais em áreas sensíveis como a saúde, educação e o transporte público, preservando-se benefícios regionais como a Zona Franca de Manaus, compensações de perdas setoriais mediante a flexibilização de outros tributos, dentre alguns outros ajustes.
Ao final, pode-se esperar algumas mudanças na tributação da renda e na folha de pagamentos, além da criação de tributo sobre operações digitais e da própria CBS, todos como elementos viabilizadores da aprovação do IBS. O país precisa de um descontaminado empurrãozinho político e legislativo. Do resto, o brasileiro empreendedor e trabalhador dão conta!
Eduardo Salusse é presidente do Movimento de Defesa da Advocacia, sócio do Salusse Marangoni, Parente e Jabur Advogados e colunista do blog Fio da Meada do Valor Econômico.
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