Trabalhar por conta própria é a saída para quase 25 milhões de pessoas

Folha de S.Paulo – 12/10/2021 –

Se pudesse escolher, Paloma Alencar Vieira, 25 anos, estaria trabalhando exclusivamente com a elaboração de projetos de construção. Em alguns meses, terá concluído a graduação em engenharia civil e quer atuar na área.

Enquanto o plano não avança, ela trabalha por conta própria, prestando serviços a escritórios e vendendo os doces que produz na cozinha de sua casa na zona leste da capital paulista.

Paloma é MEI, sigla para microempreendedor individual, um tipo de enquadramento que dá ao pequeno prestador de serviços condições de emitir nota fiscal e ter acesso ao RGPS (Regime Geral de Previdência Social) a partir de um recolhimento relativamente baixo, equivalente a 5% do salário mínimo.

Neste ano, esse valor está em R$ 55. Prestadores de serviços pagam também R$ 5, referente ao ISS (imposto municipal sobre serviços), e quem está no comércio ou indústria, recolhe mais R$ 1 de ICMS (imposto estadual sobre a circulação de mercadorias e serviços).

A estudante de engenharia é também uma trabalhadora por conta própria, categoria de ocupação que, segundo o IBGE, atingiu níveis recordes neste ano. No segundo trimestre, 24,8 milhões de pessoas declararam estar trabalhando nesse modelo, seja formal, quando há o CNPJ, ou informal.

É um recorde também em relação à população ocupada. Dos 87,7 milhões de pessoas com algum tipo de trabalho, formal ou informal, 28,2% trabalhavam por conta própria. Em pelo menos 12 estados, o percentual de trabalhadores por conta própria era superior à média nacional, passando de 30%.

O maior deles está no Amapá, onde quase quatro em cada dez trabalhadores (37,69%) era “patrão de si mesmo” ao fim do segundo trimestre deste ano.

“Tanto podem ser aqueles que estavam informais e decidiram se formalizar, quanto aquele empreendedor por necessidade”, diz a economista Diana Gonzaga, pesquisadora da UFBA (Universidade Federal da Bahia).

É considerado um “empreendedor por necessidade” aquele trabalhador que se vê sem opção, seja por não encontrar uma ocupação formal, ou porque começar um comércio ou oferecer um tipo de serviço vira uma solução mais rápida para a manutenção da renda.

“Você não encontra um emprego no seu segmento e cria seu próprio emprego”, diz Diana.

Para Paloma, empreender e se inscrever como MEI foi uma “decisão do momento”. Antes da pandemia, trabalhava como auxiliar administrativa em uma rede varejista e fazia brindes personalizados para complementar a renda. Quando foi demitida do trabalho com carteira, meses antes da eclosão do vírus, tentou manter uma loja online ao mesmo tempo em que oferecia seus serviços técnicos na área de projetos.

“Era o que eu conseguia fazer”, afirma. “Hoje estou cada vez mais focando em engenharia, pegando projetos em AutoCAD [software para projetos de engenharia], e estou procurando trabalho na área, em um escritório”.

Uma das áreas em que Paloma atua prestando serviços, a de alimentação, é tradicionalmente aquela que concentra o trabalho por conta própria.

Marmitas, bolos, doces e pratos congelados são a saída para muita gente quando as contas apertam. No primeiro semestre deste ano, porém, o segmento ganhou ainda mais espaço entre os trabalhadores que abriram MEI, segundo análise da Serasa Experian.

De 8,2% do total de microempreendedores em 2019, a alimentação virou fonte de renda de quase 10% dos que se formalizaram em 2020, e respondeu por 9,2% no primeiro semestre de 2021. “O setor foi o mais procurado nos últimos cinco anos, mas a pandemia turbinou isso”, diz Luiz Rubi, economista da Serasa.

Levantamento do birô de crédito mostra um salto na formalização de MEIs no primeiro semestre deste ano. De janeiro a junho, 1,6 milhão de trabalhadores fizeram seus cadastros como MEI, uma expansão de 31,2% em comparação com igual período do ano anterior —maior variação observada desde 2012.

O crescimento desse tipo de formalização está ligado às sucessivas crises do emprego formal, ainda que uma parte desses estejam realizando um sonho de autonomia ao ter o próprio negócio.

O economista da Serasa lembra que a expansão no número de microempreendedores vem desde a crise econômica de 2016. “Na sequência, tivemos três anos de baixíssimo crescimento. Abrir um negócio próprio vem sendo uma válvula de escape para milhões de brasileiros”, diz Rubi.

Quando a pandemia começou, em março de 2020, o país dava os primeiros sinais de recuperação do ciclo anterior de crescimento baixo e cortes de vagas, tornando ainda mais frágil a geração de empregos formais.

Na avaliação de Diana Gonzaga, da UFBA, o pagamento do auxílio emergencial teve efeito também sobre os trabalhadores por conta própria.

Nas primeiras etapas do programa, quando foi de R$ 600, e depois, de R$ 300, o benefício do governo federal assegurou renda aos que estavam sem emprego ou que tiveram suas ocupações informais prejudicadas pela pandemia, devido ao fechamento de empresas e à redução na circulação de pessoas.

Neste ano, o auxílio voltou a ser pago em abril, com nova redução. Ele agora fica entre R$ 150 e R$ 375.

Para a economista, o corte faz com que o pagamento seja insuficiente para garantir renda e consumo, forçando um retorno à força de trabalho, e muitos encontram nas atividades por conta própria uma saída mais rápida do que a dinâmica de recuperação da economia.

Há ainda os que se formalizam como MEI para garantir a contratação por outras empresas, em um tipo relação que pode ser considerada tentativa de fraude da legislação trabalhista, pois simula uma prestação de serviços de Pessoa Jurídica, mas segue as características de vínculo de emprego com carteira.

“Muito disso tem a ver com a própria crise econômica. Contratar é muito caro e as empresas acabam usando da pejotização”, diz Diana.

Enquanto a economia não der sinais fortes de recuperação, os especialistas não descartam que o trabalho por contra própria continue crescendo.

A divulgação mensal de julho da Pnad Contínua, a pesquisa de emprego do IBGE, já apontava para 25,1 milhões de trabalhadores com ocupações autônomas. O crescimento, em relação ao período de maio a julho de 2020, foi de 17,6%.

“Se a gente não engatar a economia, com a geração de emprego formal, esse empreendedorismo de necessidade vai continuar ganhando a cena”, diz Luiz Rubi, da Serasa.

A pandemia não apenas potencializou o número de inscritos como MEI. Também alterou os setores com maior ou menor procura. O segundo lugar no ranking de atividades, segundo a Serasa, ficou com os serviços de reparos e manutenção de instalações elétricas.

Em 2019, o segmento ocupava a terceira posição na abertura de empresas. Para Rubi, o aumento tem relação com a maior procura por consertos e pequenas alterações. Com mais tempo em casa, as pessoas buscaram melhorar as instalações de suas casae há quem precisasse adaptar escritórios e espaços de estudo para seguir com as atividades à distância.

Outro segmento cuja movimentação no ranking está relacionado à dinâmica da pandemia foi o comércio de confecções. Em 2019, essa atividade era a quarta na lista elaborada pelo birô. No ano passado, foi para segundo lugar e, em 2021, no primeiro semestre, está em terceiro. Para Luiz Rubi, essa movimentação está ligada à demanda por máscaras de proteção.

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