Regras internacionais de diligência e rastreabilidade nas cadeias: quais os impactos para o Brasil?

A falha em garantir a extensão de padrões de sustentabilidade à cadeia de suprimentos cada vez mais expõe as empresas a uma série de consequências sociais, financeiras e legais. Entenda melhor neste artigo dos advogados Caio Borges e Victoriana Gonzaga, do LA CLIMA

Por Caio Borges e Victoriana Gonzaga, Para o Prática ESG — São Paulo

Dentre os diversos temas da agenda ESG, a busca pela sustentabilidade nas cadeias de suprimentos e de valor é um dos tópicos mais importantes e desafiadores. A falha em garantir a extensão de padrões de sustentabilidade aos sucessivos níveis da cadeia de suprimentos cada vez mais expõe as empresas a uma série de consequências sociais, financeiras e legais.

Crescem os casos de empresas sendo acionadas judicialmente por possíveis lacunas no monitoramento das suas cadeias de suprimentos. Em uma ação judicial que começou a ser julgada neste mês de junho, a varejista Casino, que controla o Grupo Pão de Açúcar no Brasil, foi demandada por entidades da sociedade civil brasileiras e europeias na justiça francesa. Estas alegam que a empresa tem falhado em garantir que seus fornecedores diretos e indiretos de carne, no Brasil e na Colômbia, estejam em conformidade com regras ambientais e sociais, como a proibição de criar gado em terras indígenas ou em unidades de conservação.

As cadeias produtivas também são centrais na agenda climática. Há uma onda de compromissos empresariais e/ou setoriais de redução das emissões e de esforços para atingir a neutralidade de carbono. Análises da Reuters mostram, contudo, que cerca de 80-90% das emissões corporativas estão concentradas no “Escopo 3”, que compreende justamente as emissões das cadeias produtivas e a fase de pós-consumo. Muitos desses compromissos corporativos não englobam, no entanto, as emissões do Escopo 3.

Para fazer frente a esse desafio de elevar o padrão de sustentabilidade ao longo de toda a cadeia de suprimentos, ou pelo menos de garantir o respeito a padrões mínimos e universalmente aceitos sobre direitos fundamentais e meio ambiente, alguns países têm adotado legislações com exigências legais para que as empresas adotem e reportem as medidas empregadas para identificar, prevenir, mitigar e remediar violações a direitos humanos e danos ambientais, tanto em suas operações diretas (inclusive subsidiárias e filiais) como nas suas relações com fornecedores, contratadas e terceirizadas.

Tais legislações estão em vigor principalmente em países da Europa (*) e, por meio de propostas de regulamentações da Comissão Europeia, em breve passarão a ser parte das exigências legais aplicáveis a todos os países-membros da União Europeia (UE). Usualmente, tais legislações vêm sendo chamadas de leis de “devida diligência”, em consonância com instrumentos internacionais que definem o conceito de “devida diligência em direitos humanos” (DDDH) (Princípios da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos, Padrões Trabalhistas da Política Social da OIT e Diretrizes sobre Empresas Multinacionais da OCDE).

Um traço comum a essas leis de devida diligência é o fato de que elas convertem em obrigações legalmente exigíveis questões que, durante muito tempo, estiveram sob a seara dos compromissos voluntários empresariais e setoriais. Tais obrigações compreendem desde o dever de divulgar informações sobre as medidas adotadas para evitar que violações a direitos ou danos ambientais ocorram em suas atividades (obrigação de reporting), até o dever de efetivamente estabelecer políticas e procedimentos para mitigar e prevenir os impactos das atividades empresariais (obrigação de due diligence propriamente dita).

Embora nem todas as leis prevejam mecanismos robustos de monitoramento ou de cumprimento (enforcement) das obrigações nelas previstas, há exemplos de legislações que criam órgãos específicos de acompanhamento ou designam autoridades estatais para monitorar o cumprimento da lei.

Ainda, algumas leis chegam a estabelecer novas vias jurídico-processuais para órgãos de controle, ou permitem às partes que se sintam afetadas por ações ou omissões de uma empresa acioná-las judicialmente, à luz dos deveres legalmente impostos. As penalidades variam desde a aplicação de multas pela não divulgação das informações de modo tempestivo e completo até o dever de indenizar os que sofreram com os danos causados, se verificada a falha na devida diligência.

Legislações de devida diligência são particularmente relevantes para países exportadores de commodities, como o Brasil, na medida em que estabelecem, de modo implícito ou explícito, um dever de monitoramento das cadeias globais de suprimentos, a partir da obrigação básica de identificar e tomar medidas adequadas para prevenir e mitigar os atuais ou potenciais impactos aos direitos humanos e ao meio ambiente ao longo da cadeia.

Algumas normas, em vigor ou ainda em fase de aprovação, tratam especificamente do dever das empresas sediadas na jurisdição onde há a lei de devida diligência, ou mesmo empresas estrangeiras que possuam operações no país e atendam a alguns critérios (como determinada receita anual ou específico número de funcionários), de adotar medidas para garantir que os produtos que adquirem não são oriundos de áreas desmatadas ilegalmente ou produto de crimes ambientais, como crimes contra a fauna e a flora (tráfico de animais silvestres, pesca ilegal etc.).

A proposta de regulação da Comissão Europeia sobre desmatamento global e degradação florestal estabelece regras obrigatórias de devida diligência para atores que comercializam commodities no mercado da União Europeia em relação a bens e produtos associados ao desmatamento e à degradação das florestas. Até o presente momento, a proposta contempla os seguintes produtos: soja, carne bovina, óleo de palma, madeira, cacau e café e alguns produtos derivados, tais como couro, chocolate e móveis.

Os chamados “operadores de mercado” – os agentes a quem a legislação se dirige, como compradores, importadores, traders, dentre outros atores – serão obrigados a mapear/coletar as coordenadas geográficas das terras onde as mercadorias foram produzidas. Esta rastreabilidade rigorosa teria por objetivo garantir que somente produtos livres de desmatamento entrem no mercado da UE. Para esta regra proposta, o desmatamento incluiria tanto o legal como o ilegal, uma escolha relevante no enorme debate sobre qual deveria ser o standard legal aplicável. A título comparativo, uma legislação em trâmite no parlamento britânico também sobre commodities de risco propõe como padrão aplicável a lei do país de origem.

Pela proposta, as obrigações irão variar de acordo com o nível de risco do país ou região de produção, com deveres de diligência simplificados para produtos provenientes de baixo risco e um maior controle para áreas de alto risco.

Apesar desse quadro legislativo em rápido processo de transformação em países importantes para as exportações brasileiras de commodities (e outros produtos e serviços), ainda há pouca discussão no Brasil sobre os impactos que tais normas irão provocar sobre setores mais expostos às mudanças climáticas, a violações a direitos e a danos ambientais, ou sobre empresas individualmente consideradas.

Nesse sentido, é preciso, inicialmente, compreender o sentido dessas leis, especialmente em razão dos padrões de conformidade ambiental e social que já estão integrados às rotinas empresariais. O que exatamente as leis de devida diligência têm de diferente em relação a regras já existentes de conformidade em processos socioambientais?

O principal aspecto que diferencia a devida diligência instituída pelas legislações recentes das ferramentas tradicionais de gerenciamento do risco, como as auditorias em processos de fusão e aquisição e processos de verificação de conformidades, é que a devida diligência, para os fins destas leis, não consiste apenas em um processo de checagem de conformidades perante produtores e fornecedores.

Enquanto a devida diligência, quando compreendida como um processo de verificação de conformidades (auditoria), limita-se a verificar e registrar condições momentâneas, como uma fotografia, a DDDH é um processo continuado que busca melhorar a avaliação e gestão de riscos e impactos em direitos humanos (ressalte-se que danos ambientais são frequentemente associados a violações a direitos) por meio de evidências robustas, monitoramento e avaliação de informações e dados sobre as atividades e operações empresariais em cadeias de valor.

A integração da DDDH ao sistema de gestão tradicional de riscos da empresa é um ponto de atenção. Isto porque a DDDH possui atributos específicos, como é o caso do requisito procedimental de escuta e participação das partes interessadas ao longo de todo o processo. Além disso, a comunicação sobre as ações adotadas e sobre o desempenho dos processos implementados é parte integrante da noção de devida diligência, não sendo, portanto, uma mera liberalidade da empresa.

Embora o Brasil possua uma norma em vigor que estabelece, a título voluntário, o dever das empresas de realizar a DDDH e de tomar medidas para prevenir, mitigar e reparar impactos socioambientais de suas atividades (Decreto 9.571/2018), o país ainda carece de um arcabouço legal e regulatório consistente que harmonize as exigências locais com os parâmetros internacionais.

É urgente e necessário, tanto para garantir maior segurança jurídica e menores custos de transação, como para uma mais elevada proteção socioambiental, que o país caminhe no sentido de estabelecer regras legalmente vinculantes sobre o dever de diligência.

No caso nacional, destaca-se a necessidade de se preencher atuais lacunas legais e regulatórias quanto aos parâmetros e standards para uma rastreabilidade completa das cadeias de suprimentos, especialmente de commodities em regiões de alto risco, uma área que o país precisa avançar rapidamente para cumprir com seus compromissos climáticos, de direitos humanos e ambientais.

Sobre os autores

Caio Borges: Advogado e coordenador do Portfólio de Direito e Clima do Instituto Clima e Sociedade (iCS). Mestre em Direito e Desenvolvimento (Direito FGV SP) e Doutor em Direito (USP). Membro da LACLIMA.

Victoriana Gonzaga: Advogada especialista em direitos humanos, desenvolvimento sustentável e responsabilidade corporativa. Líder LATAM em Sustentabilidade na DSS+ Consulting. Mestranda em Direito e Desenvolvimento e pesquisadora do Núcleo de Governança Corporativa da FGV Direito SP.

(*) Legislações vigentes: França (2017), Austrália (2018), Países Baixos (2019), Suíça (2020/21), Noruega (2021), Alemanha (2022). Propostas legislativas apresentadas e/ou em discussão nacional: Áustria, Bélgica, Dinamarca, Finlândia, Itália, Luxemburgo, Países Baixos (buscando ampliação do escopo da devida diligência), Espanha e Suécia.

Disclaimer: Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações.

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