Por Diogo Ferraz
Diversos estudos vêm apontando que, desde o início da pandemia, salvo poucas exceções, os direitos dos contribuintes passaram a ser sistematicamente negados pelo Supremo Tribunal Federal (STF), mesmo quando amparados em precedentes do próprio tribunal. Pior: até nos casos em que foram reconhecidos, tais direitos acabaram largamente esvaziados, por meio de modulações de efeitos que preservam até planejamentos plurianuais supostamente baseados na arrecadação de tributo declarado inconstitucional. Para que a situação fique clara: o Estado viola o ordenamento jurídico, toma o que não lhe pertence à força, mas, como planejou utilizar os recursos tomados inconstitucionalmente, é dispensado de devolvê-los.
Esse cenário, próximo ao de regimes absolutistas e impensável em pleno Século XXI, exige uma reflexão sobre o atual papel do Poder Judiciário na solução dos litígios tributários. No Brasil, há um histórico de autoritarismo tributário que se materializa na recorrente insubordinação do Estado à Constituição e às leis.
Pode nos doer reconhecer essa realidade e certamente há iniciativas pontuais que tentam alterá-la, mas a veracidade dessa afirmação é demonstrada com exemplos recentes de todas as esferas federativas: (i) a insistência do governo federal de criar limitações ao benefício fiscal do PAT via normas infralegais, apesar de essa mesmíssima iniciativa já ter sido julgada inválida; (ii) a insistência dos Estados na cobrança do ICMS na transferência entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, a despeito de histórica e reiterada jurisprudência pela invalidade dessa prática; e (iii) as reiteradas e criativas tentativas dos municípios de driblar as decisões do STF que garantem um sistema diferenciado para o ISS das sociedades profissionais.
Essa enorme dificuldade do Estado brasileiro para aceitar limitações talvez tenha explicação nas nossas experiências de autoritarismo antidemocrático, eis que a pretensa supremacia da autoridade faz com que ela se sinta livre para atuar da maneira que bem entender. É nesse ambiente que o recurso ao Judiciário aparece como solução, como o meio pelo qual a sociedade obrigará o Estado a se curvar às leis – até mesmo com efeitos pedagógicos, dado que, em um sistema decisório coerente, a coibição de atentados estatais ao Direito deveria ensinar o Estado a como atuar no futuro.
Todo esse contexto poderia ter sido alterado após a nossa redemocratização. Em um Estado Democrático de Direito, a participação da sociedade na construção do ordenamento jurídico gera uma maior aceitação social das regras do jogo, as quais, por sua vez, são impostas a todos, inclusive (e especialmente) ao Poder Público. Com isso, tanto os cidadãos quanto o Estado teriam uma menor resistência (ou, vá lá, se resignariam) a cumprir as regras que lhes são impostas, reduzindo, em tese, a demanda pela intervenção do Poder Judiciário.
Contudo, hoje vivemos o pior dos mundos: por um lado, continuamos a ter um Estado com a mentalidade ditatorial de não aceitar limitações impostas pelo direito tributário; por outro, o Judiciário seguiu sendo visto como a solução possível contra as arbitrariedades tributárias, mas o seu tribunal de cúpula tornou-se protetor dessa insubordinação estatal, garantindo que o desrespeito do Poder Público ao ordenamento jurídico não tenha maiores consequências. Em lugar da prevalência intransigente das normas constitucionais, assistimos à fabricação em série de alterações (quase sempre injustificadas, disfarçadas ou arbitrárias) de entendimentos cristalizados acerca dos direitos dos contribuintes e de modulações de efeitos cada vez mais agressivas.
Essa política decisória produz desastrosas consequências jurídicas, sociais e econômicas, que aparentemente vêm sendo ignoradas em prol de um consequencialismo seletivo que só se preocupa com a preservação da arrecadação do Estado: ela aniquila a força normativa da Constituição, cuja efetividade varia de acordo com a conveniência estatal de momento; fulmina qualquer esperança de estabilidade e segurança jurídicas, pois permite que a decisão de hoje seja contornada artificialmente amanhã; reduz a autoridade dos próprios tribunais, que passam a ter suas decisões desacreditadas e a a ser vistos como meros garantidores da vontade fazendária; e estimula o Estado a seguir com (ou até aprofundar) o mencionado autoritarismo tributário, confiante em que, no futuro, ou as posições protetivas dos contribuintes serão revertidas, ou, no pior cenário, poderá manter para si grande parte do que foi arrecadado ao arrepio do ordenamento jurídico.
Em suma, ao menos em matéria tributária, o Judiciário parece ter desistido de forçar o Estado a se curvar ao direito – algo que, em nosso país, realmente exige resiliência. No curto prazo, essa postura pode até resolver dificuldades arrecadatórias momentâneas. No médio, dará lugar à completa desestruturação do sistema tributário, com o Estado tendo poderes absolutos (ou quase) e os contribuintes, direito nenhum. No longo, comprometerá a credibilidade e a legitimidade dos próprios tribunais. Civilizatoriamente, isso está longe de ser o melhor caminho.
É urgente, portanto, que o STF (re)assuma o papel que lhe cabe nas disputas tributárias. A pacificação na relação tributária não será alcançada por meio da prevalência quase absoluta da posição de uma das suas partes, mas, sim, com julgamentos que promovam a máxima efetividade do ordenamento jurídico e que formem um sistema de precedentes coerente, , consistente e que possa ser levado a sério. Que assim volte a ser a partir deste ano.
Diogo Ferraz é sócio de FreitasLeite Advogados, doutor em Direito Tributário pela Universitat de Barcelona, mestre em Direito Público pela UERJ e coordenador do Projeto Jurisprudência Tributária (PJT)