Esse modelo de privatização da Eletrobrás é um desrespeito, diz Elena Landau

A Câmara dos Deputados aprovou em segunda votação, na segunda-feira, a medida provisória de capitalização da Eletrobrás já vitoriosa no Senado. Agora, o texto segue para sanção presidencial. Tendo transitado, no passado, por diferentes áreas de governo, a ex-diretora de privatização do BNDES Elena Landau* não acredita na possibilidade de o presidente Jair Bolsonaro vetar qualquer um dos “jabutis” anexados à proposta de privatização da estatal. “Esses jabutis vêm de forças muito poderosas”, analisa a economista e advogada.

Ela se refere, principalmente, à questão das térmicas e gasodutos, que nada têm a ver com o projeto original, mas representam custos que ao final deverão cair na conta dos consumidores. “Esse modelo de privatização é um desrespeito”, resume, pois ele cria uma reserva de mercado que é “uma distorção absoluta na forma de operar o setor”.

Nesta entrevista para a série Cenários, ela critica as iniciativas do governo Bolsonaro, lamenta a bipolarização que já desponta para 2022 entre bolsonarismo e lulismo e faz a chamada para uma terceira via: “A gente precisa recuperar a capacidade de diálogo”. A seguir, os principais trechos da conversa.

Assistimos enfim, no Congresso, aos passos finais da privatização da Eletrobrás. Você gosta do modelo no qual ela foi desenhada?
A privatização andou. Foram feitas muitas concessões do governo à área política, inventaram uma revitalização da Bacia de Furnas que tem como padrinho o senador e presidente da Casa, Rodrigo Pacheco – é área de atuação dele –, e um pacote de desembolsos para agradar à classe política. Então, depois do relatório do (deputado) Elmar Nascimento (DEM-BA), produziram-se vários jabutis – eu costumo dizer que são tão grandes que derrubaram a árvore. Os principais se referem à questão das térmicas e gasodutos. E esse assunto tão ruim, tão distorcido, ao final dominou a discussão.

Mas, pelo que entendi do projeto de privatização, o novo dono terá o direito de dizer sim ou não à construção de térmicas.
Uma vez privatizada, a Eletrobrás vira uma empresa como outra qualquer. Concordo. Mas terá algumas obrigações. Dou um exemplo. Uma série de aportes previstos para essa conta do desenvolvimento da CDE, onde estão os encargos do sistema, vai sair do caixa a ser arrecadado na oferta pública. Os tais fundos de revitalização também sairão direto da Eletrobrás. A obrigação de contratação não é da Eletrobrás pública, utilizaram esse projeto pra dar carona a um lobby muito forte na área de gás e gasodutos que já tentou essa reserva de mercado antes em vários outros projetos. É um assunto completamente distinto, e o apêndice acabou dominando o todo. Por isso eu digo que esse jabuti, especificamente, de tão grande, derrubou a árvore.

Você vê chance de esses jabutis serem vetados pelo presidente?
Não acredito. Uma coisa que chama a atenção, nesse projeto todo, é como o Ministério de Minas e Energia abriu mão, pacificamente, de suas prerrogativas. O relator da MP invadiu essa área, que inclui o planejamento do setor elétrico, a definição dos leilões. O que se vê no governo é a vontade de fazer de qualquer jeito. A única esperança do setor elétrico – e eu nunca vi isso em 30 anos – é a unanimidade contra essa política. Todos contra essa reserva de mercado, que é uma distorção absoluta da forma de operar o setor.

E, daqui para frente, como isso fica?
A esperança dos que criticam o projeto, como eu, era que o Senado pudesse impugnar esse apêndice, que nada tem a ver com a MP. Não aconteceu. Do jeito que ficou, lá na frente vai dar errado e vão dizer: a culpa é da privatização. Não é. A culpa é da forma como a privatização está sendo feita.

Por que no governo FHC a privatização da área de telefonia avançou, mas a das elétricas não?
O governo FHC começou pelas distribuidoras, ficou um restinho que outro governo concluiu. O problema todo está na geração. Ela começou lá no governo FHC, quando houve uma opção de se começar a privatização pelas subsidiárias. Em vez de vender a Eletrobrás, venderiam Furnas, Gerasul, Chesf e Eletronorte. Foi sucesso a venda da do Sul, que hoje é uma das mais dinâmicas do mercado, a Tractebel. Houve momento em que a Tractebel chegou a valer o dobro da Eletrobrás. Aí, na hora de fazer a privatização de Furnas, o então governador de Minas, Itamar Franco, botou tanques na rua. Os mineiros disseram ‘o lago de Furnas é nosso, os rios são nossos, ninguém vai privatizar’. Seguiu-se uma guerra de liminares, a ideia não avançou.

Inclusive a Cemig continua estatal…
Continua. Na mesma época, o Mario Covas, em São Paulo, avançou com a privatização da Cesp, que recentemente foi concluída. Privatizar é complicado, sempre aparece resistência. O governo FHC avançou bastante nisso, conseguiu vender a Vale do Rio Doce e todo o sistema Telebrás.

Será que essa história de colocar jabutis não é uma forma de distrair, aí o projeto passa e Bolsonaro veta?
Não acredito, porque esse jabutis vêm de forças muito poderosas.

Vêm direto da fonte, né?
Direto da fonte, de forças privadas muito fortes articuladas com o Centrão. O que ocorre na privatização da Eletrobrás já se viu e se vê em outras reformas. Tem um açodamento do governo, para dizer ‘estou fazendo, eu privatizei’. Também vão fazer uma reforma administrativa de qualquer jeito, a reforma tributária idem. É até engraçado, tem pessoal da área dos empregados, da resistência contra a privatização, usando os meus artigos como apoio, dizendo ‘até ela, a carrasca das estatais, é contra’. E eu lhe digo: sou a favor, sim, da privatização, mas não dessa. Nunca gostei desse modelo. Fazer por MP a venda de uma estatal é um acinte, um desrespeito.

E você, com toda essa experiência, está hoje no comando do Livres.
Sou do Conselho Acadêmico do Livres. O grupo tem uma ala do executivo e um conselho, como se fosse um instituto de pesquisas. O Livres é um movimento liberal por inteiro, que não cabe só nesse liberalismo de agenda econômica. Tem preocupação com outras áreas essenciais – como inclusão, proteção social, mobilidade social, fortalecimento das instituições democráticas, diversidade… Eles me atraíram por causa disso.

Como você chegou a essa decisão?
Eu saí do PSDB em 2017, com aquelas confusões do Aécio (Neves) e a pouca mobilização do partido. Então me convidaram para presidir a fundação do novo grupo. A intenção era criar um partido, ele já tinha 12 dos 27 diretórios do PSL. Aí veio a traição, o Bolsonaro entrou no PSL e o Livres rompeu na hora com o partido. Pela firmeza ética, eles me fisgaram de vez.

Do que você cuida?
Não sou da área executiva, sou do conselho, mas é uma relação muito próxima. Fizemos em 2018 uma construção suprapartidária que tem nomes como Persio Arida, Samuel Pessôa, Sandra Rios, Fernando Schuller, Paulo Roberto de Almeida, Ricardo Paes de Barros… Posso estar esquecendo alguém. Mas, enfim, pessoas que sempre foram liberais. Não é um partido, nem tem intenção de ser. Mas foi o primeiro, talvez único grupo liberal que rompeu com Bolsonaro já de saída. Ele não tem nada de liberal.

Olhando para 2022, acredita que vai ter espaço para uma terceira via?
Se eu achar que não tem, eu desisto. Vou para um retiro, ler romances, paro de escrever. A polarização só interessa ao Bolsonaro e ao Lula. A gente tem de construir uma alternativa. E eu acho que o Tasso Jereissati é, disparado, o grande nome para ela.

Acha que ele vai topar?
Acredito que sim. Ele já deu entrevistas, pode haver uma composição. A grande importância de 2022 está em derrotar o bolsonarismo.

Como acha que estaremos lá por julho de 2022?
Não tenho bola de cristal. É óbvio que, se Bolsonaro tiver dinheiro para gastar, começar a distribuir o Bolsa Família e o PIB tiver um mínimo de sustentação, ele chega bem. Mas uma pessoa já com mais de 500 mil mortos nas costas continuar com esse nível de aceitação… É uma coisa digna de ser estudada, essa sociedade brasileira, não é?

Como lidar com isso? Essa bipolarização direita-esquerda é uma negação da realidade, não?
Isso começou lá atrás, no Plano Real, quando ainda havia uma simpatia entre PT e PSDB. Com o real, o projeto de poder do PSDB ficou claro, aí começou uma coisa de polarização. No governo Lula, apesar de falarem em ‘herança maldita’, foram chamadas pessoas como Ricardo Paes de Barros, Marcos Lisboa, o Antonio Palocci era visto como pessoa ‘de centro’. Mas tudo se desmantelou no mensalão. O Lula chegou ao segundo mandato, e aí veio a polarização radical. Nós e eles, neoliberais fascistas, privataria tucana etc.

Que papel o liberalismo pode ter nesse cenário?
Volto a insistir que o liberalismo tem muito a ajudar, se você juntar liberdade econômica com inclusão social, que é o que defendemos. Mas esse caminho pressupõe uma condição imediata: a gente precisa recuperar a capacidade de diálogo.

*ECONOMISTA E ADVOGADA, EX-DIRETORA DE PRIVATIZAÇÃO DO BNDES NA ERA FHC E INTEGROU OS CONSELHOS DA VALE E ELETROBRÁS, ENTRE OUTROS. PRESIDE HOJE O CONSELHO ACADÊMICO DO LIVRES

O ESTADO DE S. PAULO

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