Conjur
75,4 milhões. Essa cifra não é de nenhum prêmio milionário de loteria, mas o número de processos pendentes na Justiça brasileira no último dia de 2020, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Desse total, 52,3% — ou algo em torno de 39,4 milhões de ações — estavam na fase de execução.
Esses 75,4 milhões de processos no Brasil de 31 de dezembro de 2020 representam dois milhões a menos em relação a 2019. Uma gota no mar profundo formado pelas ações que estão aguardando passar pelo gargalo da execução penal, mas um número afetado pela epidemia da Covid-19, que transformou todos os setores da sociedade brasileira.
Importante considerar ainda que há 13 milhões (17,2%) nesse montante que estavam suspensos, paralisados ou em arquivo provisório, à espera de alguma situação jurídica futura, no fim de 2020.
Segundo o CNJ, as prateleiras do Judiciário brasileiro receberam em 2020 cerca de 25,8 milhões de novos casos. “A demanda pelos serviços de Justiça, assim como o volume de processos baixados, diminuíram em relação ao ano anterior. Além de 2019 ter apresentado o maior valor da série histórica, o número foi impactado pela pandemia da Covid-19. Se forem consideradas apenas as ações judiciais efetivamente ajuizadas pela primeira vez em 2020, sem computar os casos em grau de recurso e as execuções judiciais, tem-se que ingressaram 17,6 milhões ações originárias em 2020, -12,5% do que no ano anterior”, explica o estudo.
Impacto da Covid-19
Durante o ano de 2020, foram proferidas 25 milhões de sentenças e decisões terminativas, uma redução de 6.569 mil casos (-20,8%) em relação a 2019. Mas é provável que tais números tenham sido afetados pela Covid-19, segundo o CNJ.
O primeiro grau, por exemplo, registrou maior queda (23,3%), pois é o momento em que se exige uma instrução probatória mais detalhada. As decisões terminativas no segundo grau, em que a instrução probatória já se encontra encerrada nos julgamentos recursais, reduziu em menor ordem de grandeza (8,2%).
Especialistas ouvidos pela Conjur apontam a necessidade de aperfeiçoar os métodos e até mesmo promover mudança de postura em relação ao Direito Processual, sob pena de inviabilizar a Justiça no Brasil.
A maior parte dos processos de execuções é composta pelas fiscais, que representam 68% do total. A análise do CNJ aponta que esses processos são os principais responsáveis pela alta taxa de congestionamento do Poder Judiciário, representando aproximadamente 36% do total de casos pendentes.
É necessário somar a essa estatística aqueles processos que retornaram à tramitação sem necessariamente configurar um caso novo. Em 2020, foram reativados 1,7 milhão de processos que tiveram sentenças anuladas na instância superior, ou casos de remessa e retorno de autos entre tribunais em razão de questões relativas a competência, ou devolução dos processos à instância inferior para aguardar julgamento em matéria de recursos repetitivos ou de repercussão geral, ou mesmo por mudança de classe processual.
Tempo de tramitação
O estudo do CNJ aponta que está na Justiça estadual o maior obstáculo de desempenho. Ao se comparar o tempo do recebimento da ação até o julgamento da sentença entre o primeiro grau e o segundo grau, considerando o tempo médio de tramitação de toda a Justiça brasileira, enquanto na instância inicial leva-se uma média de três anos e dois meses, no segundo grau esse tempo é reduzido para praticamente um quarto: nove meses.
Os dados por segmento de Justiça demonstram que o resultado global do Poder Judiciário reflete quase diretamente o desempenho da Justiça estadual, com 77,4% dos processos pendentes. A Justiça Federal concentra 14,5% dos processos e a Justiça Trabalhista, 6%. Os demais segmentos juntos acumulam 2% dos casos ainda por serem encerrados.
Já a Justiça Eleitoral apresenta sazonalidade de movimentos processuais, com altas especialmente nos anos eleitorais (2012, 2014, 2016, 2018, 2020), e de forma mais acentuada nos anos de eleições municipais (2012, 2016 e 2020).
Mesmo patamar de 2011-12
O CNJ mede ainda a produtividade dos magistrados, que, segundo o levantamento, vem crescendo desde 2014. Em 2019, atingiu o maior valor da série histórica, com 2.106 casos baixados por magistrado(a), mas em 2020 retornou ao patamar de 2011-2012, número este que estaria afetado pela Covid-19. Em números, cada magistrado(a) brasileiro(a) resolveu 1.643 processos, o que significa uma média de 6,5 casos solucionados por dia útil do ano, sem descontar períodos de férias e recessos.
Os 6,5 processos finalizados diariamente por cada juiz(a) pode parecer uma estatística boa, mas, na comparação com a quantidade de processos que ingressam no sistema, é possível perceber pequeno avanço e o avanço do problema.
Somente na área de saúde, de acordo com o advogado Fernando Bianchi, sócio do escritório Miglioli, Bianchi, Borrozzino, Bellinatti e Scarabel Advogados (M3BS), é aberta uma nova ação a cada três horas, com base no estudo do CNJ. Isso sem contar as demais áreas do Judiciário. “A maior parte de entradas é a judicialização na saúde privada. É um número muito grande”, explica o advogado ao destacar que o brasileiro tem a cultura da judicializar tudo, o que só provoca aumento do número de processos em tramitação, principalmente os sem solução.
Outro ponto observado por Bianchi é a morosidade e a falta de qualidade técnica das investigações policiais. “Um laudo chega a ficar dois anos e meio na fila do laboratório da Polícia Civil do Estado de São Paulo. Mas temos também os juízes generalistas, que não têm especialização, o que ajudaria na tomada de decisões mais efetivas e rápidas. Julgam problemas de saúde, do consumidor, empresarial, criminal, mas é preciso ter mais capacitação”, reclama ele.
O promotor de Justiça de Araguari (MG) André Luís Alves de Melo vê a necessidade de mudança na estrutura de tramitação do processo na Justiça. “Importante destacar que os artigos transcritos do Código de Processo Penal datam de 1941 — período do fascismo — e não foram atualizados pelas legislações posteriores até a presente data, exceto a redação do artigo 28, mas ainda sem adentrar na discussão da obrigatoriedade. Ademais, naquela época, em 1941, a estrutura jurídica brasileira era outra e a carreira do Ministério Público sequer existia como tal. Nosso CPP foi copiado do Código de Rocco Italliano, o qual era tributo ao inquisitivismo e fascismo, e hoje já foi aprovado no Código de Processo Penal na Itália na década de 90, com outra estrutura processual”.
De acordo com o promotor, a política processual tem características diferentes em cada país. Mas é necessário, aqui, verificar a significância de instaurar um processo para toda e qualquer demanda que chegue às cortes, para evitar que o sistema judiciário se torne fracassado. “Haverá economia para todos, afinal, um processo é dinheiro que movimenta a máquina. Nem todo mundo quer isso. É necessário modificar a mentalidade jurídica vigente”, diz Melo.
Uma mudança que, na avaliação de Helder Moroni Câmara, sócio do escritório PMMF Advogados, levará gerações de novos advogados, promotores, procurados e magistrados para mudar. Ele defende a necessidade de encarar as demandas sem a necessidade de chegar ao litígio. “Porque a litigiosidade no Brasil se transformou num costume, o que não acontece nos países nórdicos da Europa”.
“A solução de prateleira, de mais recursos, mais material humanos, mais equipamentos, não resolverá nada. É enxugar gelo, apesar de parecer ótima. Vamos continuar gastando bilhões sem solucionar o problema ao continuarmos aceitando qualquer causa nos tribunais. Assim, o interessado na solução não vai ver solução”, avalia Câmara.
“Da forma como está, não tem solução. O acesso à Justiça é um recurso esgotável, vai acabar. Mas o setor insiste em manter a estrutura que possibilita ganhos a muitas pessoas. O advogado deve orientar seu cliente e defender que nem sempre é necessário utilizar um processo judicial. Repito, os recursos para a Justiça são esgotáveis, não são infinitos. A Justiça é um miniecossistema, que tem limites”, prevê o advogado.
https://www.conjur.com.br/2022-jun-17/elevado-numero-processos-pendentes-atrapalha-andamento-justica