Debate sobre as mudanças do Imposto de Renda já completou a cartela do bingo das reformas

Pedro Fernando Nery*

Deu bingo na reforma tributária. O debate sobre as mudanças no Imposto de Renda já completou a cartela. Toda vez que uma reforma com potencial redistributivo é apresentada, os mesmos argumentos são apresentados por grupos de interesses diferentes. Pode ser na reforma da Previdência, na reforma administrativa, no teto de gastos. Dessa vez, não foi diferente.

O primeiro argumento é o “argumento da classe média”. Ainda que uma proposta seja desenhada para diminuir a transferência de recursos para uma elite (sejam aposentadorias favorecidas, salários elevados ou renúncias fiscais), o grupo tenta convencer a opinião pública que é, na verdade, parte da classe média. Frequentemente com sucesso.

Parte do desafio aqui é que o Brasil é um país imensamente desigual. Pessoas que estão bem posicionadas na distribuição de renda podem conhecer pessoas mais ricas que elas, e almejar seu padrão de consumo. Passam, assim, a genuinamente se considerar como classe média – mesmo que tenham um nível de renda para estar entre o 1% de brasileiros mais ricos. Não só o nível de renda, mas também a segurança – a certeza de que não há chance de cair na pobreza no horizonte distanciam famílias assim da classe média.

O caso da reforma do Imposto de Renda é particularmente interessante, porque ela foi proposta dando benefícios à classe média, aumentando o limite de isenção para rendas mensais de até R$ 2,5 mil, que ficariam livres de pagar o IR. Para compensar a perda de receita, o governo almejou tributar lucros e dividendos que hoje não pagam IR na pessoa física, focando nos que ganham mais de R$ 20 mil por mês.

Sem entrar no mérito de outras questões complexas de reforma, o fato é que muitos afetados pela mudança passaram a defender que a reforma seria ruim… para a classe média. O argumento tende a ser que ela atinge profissionais liberais: estes novos contribuintes do Imposto de Renda não seriam a elite, mas sim a classe média.

Aqui, lembra muito a defesa de servidores públicos contra perda de benefícios: o grupo não pode ser considerado rico, independentemente de renda, porque pertence à classe trabalhadora. “Rico mesmo é o dono dos meios de produção.” Profissionais liberais têm a mesma inclinação: são advogados ou médicos que dizem que não são ricos se não podem parar de trabalhar sem perder a renda.

Em uma economia crescentemente voltada para os serviços, a distinção entre dono dos meios de produção e trabalhadores é cada vez mais difícil. Ambas as classes são amplas: do dono da Kombi do cachorro-quente ao sócio do banco (capitalistas), do pedreiro ao Neymar (trabalhadores). Não podemos considerar classe média quem tem renda maior que a imensa maioria da população apenas porque este não é dono de uma fábrica ou fazenda.

Há outro argumento no bingo das reformas: o “argumento do emprego”. É o de que a medida, embora endereçada a uma elite, prejudicará o emprego dos mais pobres. No caso da tributária, o argumento vai do “trickle down economics” (a tese de que o PIB depende mortalmente do investimento dos mais ricos) à fuga de capitais. Na previdenciária ou administrativa, o argumento passa pelo efeito multiplicador, a alegação de que o consumo de servidores é vantajoso por mobilizar a economia, e sua redução seria “recessiva”.

Um terceiro é o “argumento do déficit”. As reformas teriam o efeito contrário ao pretendido e piorariam o déficit e a dívida do governo. No caso da tributária, pela elisão ou falência: pagar Imposto de Renda seria tão insuportável que os mais ricos sempre conseguiriam formas de não o fazer, ou mesmo seriam forçados a fechar seus negócios.

O governo não conseguiria, então, arrecadar o que queria. Há uma pseudociência envolvida, quando o interlocutor cita a “curva de Laffer”. Para outras reformas, a tese é semelhante: ao prejudicar o consumo de funcionários públicos, o próprio governo arrecadaria menos, e a economia pretendida seria um tiro que sai pela culatra.

Algumas elites são mais representadas pela esquerda; outras, pela direita. A similaridade do discurso, porém, mostra que talvez não haja tantas diferenças assim. Que o leitor escaldado fique atento ao bingo das reformas.

*DOUTOR EM ECONOMIA

O ESTADO DE S. PAULO

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