Brasil não está preparado para destruição de trabalhos pela Covid

Folha de S.Paulo – 30/01/2022

Thiago de Campos, 34, hoje vende balas em uma rua próxima ao restaurante onde era cozinheiro e que fechou durante os primeiros meses da pandemia. “Tenho mais de dez anos de profissão, mas demitiram todo mundo, começando pelos mais experientes.”

Do dinheiro que ele ganha, que às vezes chega a R$ 150 em um dia, depende a mãe, que ficou doente no ano passado. Ele conta que a pandemia causou dois baques em sua carreira: a demissão e a dificuldade de se recolocar no mercado com o salário de antes.

“Até aparecem vagas, mas se pagavam R$ 2.100 por mês, agora as ofertas quase não passam de R$ 1 mil. Por enquanto, vendo doces, faço bicos como auxiliar de obras e sonho em abrir meu próprio restaurante. Em algum momento, as coisas vão melhorar.”

Histórias como as de Campos não são incomuns. O impacto da Covid-19 foi sentido sobretudo pelos trabalhadores informais e de baixa remuneração. Já o pós-pandemia deve acelerar o processo de digitalização do trabalho e a destruição de funções repetitivas e de baixa qualificação —e o Brasil não está preparado para nenhuma das mudanças que estão por vir, segundo especialistas.

Diversos relatórios internacionais apontavam crescimento expressivo das áreas ligadas à https://sindeprestem.com.br/wp-content/uploads/2020/10/internet-cyber-network-3563638-1.jpg da informação e algumas dessas mudanças já acontecem no Brasil, ainda que de forma mais lenta, dada a falta qualificação para as áreas mais demandadas, diz Janaína Feijó, pesquisadora da área de Economia Aplicada do FGV/Ibre (Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getulio Vargas).

“O Brasil continua tendo um mercado de trabalho fragilizado, e a retomada após o baque causado pela pandemia tem se dado pela volta do trabalho informal e a manutenção do desemprego elevado. Embora a desocupação deva cair aos poucos, o quadro ainda é muito preocupante”, diz.

Segundo a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua, a desocupação do trimestre encerrado em novembro era de 11,6%. A taxa teve uma leve queda, mas os dados também mostram que a renda real dos trabalhadores voltou a cair na média, para R$ 2.444.

Feijó colaborou em um estudo publicado no ano passado, que avaliou as ocupações que devem emergir nos próximos anos. Pelo levantamento, a classificação “Outros Vendedores”, que inclui vendedores remotos, a domicílio e por telefone, deve mais que dobrar entre 2019 e 2029, passando de 3,27% dos postos de trabalho para 11,84%.

Por outro lado, é esperada uma leve queda entre os vendedores de lojas físicas (de 7,43% para 7,1%) e de trabalhadores domésticos e auxiliares de limpeza em escritórios (de 7,85% para 5,68%).

“A https://sindeprestem.com.br/wp-content/uploads/2020/10/internet-cyber-network-3563638-1.jpg traz novas oportunidades de ocupações e a tendência é crescer a demanda por trabalhadores na chamada economia verde, na engenharia e na computação em nuvem. O país precisa, no entanto, estar pronto para aproveitar isso”, diz Feijó.

Em busca de oportunidades em um setor que destacou durante a quarentena, Felipe Henrique, 21, conseguiu uma vaga de assistente de ecommerce de uma rede de pet shop em São José dos Campos (SP) há dois anos.

“Sempre vi que era um mercado com potencial e a minha experiência anterior, como auxiliar de logística, ajudou bastante. Acabei apostando em um setor que foi impulsionado pela digitalização forçada e que deve continuar crescendo.”

Alguns profissionais mantêm o pensamento linear, esperando um tipo de trabalho que já não existe mais, com previsibilidade nas atividades, mas em um mundo cada vez mais imprevisível. É preciso mudar isso”, diz Daniela Diniz, diretora de Conteúdo e Relações Institucionais da consultoria GPTW.

Para reverter a perda de postos de trabalho, seria preciso um investimento por parte das empresas em atualizar quem já está empregado, um esforço do sistema de ensino para treinar as novas gerações e políticas públicas para requalificar os atuais desempregados, resume o professor do Insper Sergio Firpo.

Um estudo da IBM publicado no fim de 2020, o primeiro ano da pandemia, apontava que 51% dos executivos brasileiros tinham na digitalização de suas empresas sua prioridade de investimentos nos próximos dois anos.

Firpo ressalta que as medidas de isolamento social e trabalho remoto, mesmo que paulatinamente reduzidas, também devem fazer com que alguns segmentos revejam suas práticas e aplicação de mão de obra. “Os ganhos de produtividade que o trabalho remoto trouxe também podem fazer com que alguns postos sejam destruídos.”

Segundo o especialista, o trabalho exercido de diferentes cidades e o aumento dos chamados nômades digitais —profissionais que trabalham para uma empresa a partir de qualquer lugar— devem gerar uma mudança a favor dos trabalhadores mais qualificados, enquanto o vendedor de café e bolo que montava sua banquinha na porta de uma empresa pode ficar sem trabalho.

PRESSÃO NA JUSTIÇA DEVE CRESCER E REFORMA ENTRA NA MIRA
Além dos desafios impostos pela pandemia, com a proximidade da eleição também ganha força uma possível revisão de trechos ou mesmo revogação da reforma trabalhista aprovada pelo governo de Michel Temer (MDB) em 2017.

Segundo as entidades sindicais laborais, as mudanças feitas na CLT, flexibilizaram contratações, mas também aumentaram a vulnerabilidade dos trabalhadores.

“A legislação favorece uma precarização e não sabemos a dimensão dos impactos da pandemia”, diz o sociólogo do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) Clemente Ganz Lúcio.

Ele diz que o aumento esperado do número de trabalhadores por aplicativo e novas modalidades de trabalho virtual que devem surgir também vão demandar um reforço das regras. “No governo atual, não há chance de revisar essa agenda, mas o próximo deve criar um sistema de proteção universal.”

A pandemia também deve gerar maior pressão por processos trabalhistas. Segundo o TST (Tribunal Superior do Trabalho) foram julgados de março de 2020 a setembro de 2021 mais de 523 mil processos —alta de 24,5%.

Para o professor de direito Ricardo Calcini, a legislação atual não estava preparada para a pandemia. “As próprias medidas provisórias que foram criadas no período aumentaram as demandas na Justiça e houve um crescimento da litigiosidade de temas, como o teletrabalho e doenças do trabalho.”

Segundo pesquisa exclusiva da GPTW, a pandemia, de fato, modificou a percepção que os trabalhadores têm de seu ambiente profissional. A saúde mental passou a ser mais importante para 80% dos entrevistados, ao mesmo tempo 52,8% disseram que a política de benefícios da empresa não sofreu alterações.

Compartilhe