Para o ex-presidente do Banco Central Affonso Celso Pastore, um dos economistas mais respeitados do País, o Brasil não vai conseguir andar muitos metros se não resolver urgentemente a questão das contas públicas. O País chega ao final deste ano com uma dívida próxima a 100% do PIB, após gastos bilionários para conter os efeitos da pandemia da covid-19. E as perspectivas não são boas – a projeção, segundo Pastore, é continuar crescendo até pelo menos 2028 ou 2029, quando chegaria a 110% do PIB. Em resumo, uma grande crise fiscal.
Para o economista, não há outra solução para esse problema que não seja fazer uma transferência de renda cortando gastos – ou seja, deixar de gastar com benefícios a servidores e subsídios ineficientes para que sobrem recursos. Para isso, é preciso que as reformas estruturais, como a tributária e a administrativa, saiam do papel. Mas o seu grande temor é que nada disso aconteça – e, pelo contrário, o governo simplesmente eleve os gastos, por conta das pressões que devem vir no ano que vem.
Pastore, colunista do Estadão, inaugura a série de entrevistas que vão discutir saídas para a crise fiscal que ronda o País.
● Qual tem sido o impacto da pandemia da covid-19 para a economia brasileira?
A pandemia pegou o Brasil numa situação fiscal muito frágil. O Brasil, como todos os países, teve de gastar e gerou um déficit primário (despesas superiores às receitas) que levou a dívida para próximo de 100% do PIB. Isso é uma restrição importante ao crescimento econômico. Não podemos fugir de fazer um ajuste fiscal sério, e a pandemia ainda não terminou. O País entrou em uma recessão, curta, e agora estamos saindo dela.
● Está em curso uma recuperação rápida?
Não tenho dúvida de que foi rápida, mas a questão aqui não é o ano de 2020, mas o de 2021. A recuperação foi rápida porque se desligou a economia, a máquina parou e depois foi ligando de novo e voltou a funcionar. Só que nos três anos anteriores o Brasil crescia a 1% ao ano e a perspectiva que temos para 2021 é de um crescimento muito lento. Se é que vamos ter algum. Se tirar o “carry over” (efeito estatístico pelo qual o nível de atividade de um ano passa para o seguinte), que pode ser de 2,5%, 3%, a perspectiva para 2021 é de uma economia estagnada.
Pode, na prática, não ter crescimento em 2021?
Se tiver crescimento, é muito pequeno. Olhando hoje o cenário é muito mais na direção de ter uma economia parada ao longo de 2021. O auxílio emergencial foi fundamental para fazer a recuperação rápida. Pegou 66 milhões de pessoas, garantiu a renda delas, que compraram bens. O lado positivo é que a recuperação foi rápida. O lado negativo é que isso levou a dívida pública para perto de 100% e gerou um problema fiscal que herdamos de 2020 e 2021. Mesmo cumprindo o teto de gastos (regra prevista na Constituição que impede que as despesas cresçam em ritmo superior à inflação), ela ainda vai crescer até 2028, 2029, quando vai chegar perto de 110% do PIB.
● Quais serão as consequências desse cenário?
Uma dívida muito maior e com uma dinâmica muito pior. Subiu o prêmio de risco dos títulos públicos. Isso torna a administração da dívida mais difícil, aumenta a incerteza, o que reduz investimento em capital fixo (edifícios, máquinas e equipamentos) e o crescimento do PIB potencial (a capacidade de produção de uma economia utilizando todos os recursos disponíveis, sem pressionar a inflação). Gera também uma depreciação cambial (aumento do dólar), na qual o câmbio fica muito acima da taxa de equilíbrio.
● A vitória do Joe Biden nas eleições americanas melhorou os indicadores. O que pode se esperar?
A eleição de Biden ajuda. Mas nosso problema não é bem internacional. É doméstico. Com toda a ajuda internacional advinda da vitória de Biden, se o Brasil não resolver o seu problema doméstico, não vai andar muitos metros. Refluiu um pouco por causa da euforia com a eleição do Biden. Mas é um movimento transitório. Não é permanente. Para botar o câmbio de novo num nível mais forte, menos depreciado, tem que tirar o risco fiscal, garantir que essa trajetória seja sustentável. Para isso, é preciso uma âncora fiscal. A âncora que existe hoje é do teto de gastos. O governo tem um dilema que é voltar para o teto de gastos ainda que a pandemia continue. Se não mantiver o teto, o prêmio de risco vai depreciar mais o real e alta do dólar acaba migrando para os preços domésticos e produzindo subida de inflação, que em certo sentido já vem ocorrendo.
● Esse movimento, que seria transitório, dá um tempo maior para o Banco Central?
O BC não tem de agir agora. Roda o filme para frente. Se o câmbio para de depreciar ou valoriza, não tem problema de inflação. Agora, desde o começo do ano, ele não parou de depreciar porque existem dúvidas sobre a ancoragem fiscal. O problema não é do BC. É do Ministério da Economia e do governo. Eles têm de enfrentar para que o País saia dessa armadilha fiscal na qual estamos. Se sairmos, o câmbio talvez até valorize e esses sinais de inflação que estão começando a acontecer murcham. O BC não teria de subir os juros. Mas, se ficar validada uma certa teoria que existe dentro do governo, principalmente de alguns ministros, de que deveria aumentar gasto…
● Qual a saída para se evitar a crise fiscal?
Fazer uma transferência de renda cortando gastos. Não significa aumentar gastos. Se o governo fizer reformas que economiza outros gastos e, com isso, transferir renda para quem estiver desempregado, não é um erro. É remanejamento de gastos.
● Não poderia haver um ajuste no teto, um meio termo? Uma flexibilização transparente do teto para permitir mais investimento ao mesmo tempo em que são feitas as reformas, como defendeu o economista Armínio Fraga em entrevista ao “Estadão”?
O Armínio é um sujeito respeitável, mas eu discordo do que ele está dizendo. Se tivéssemos um governo com uma agenda de reformas, que tivesse enfrentando seriamente, corrigindo as distorções que existem no Brasil com um programa bem feito, talvez aquilo que o Armínio está propondo funcione. Agora, nós não temos um governo com essa qualidade. Eu discordo do Armínio porque ele está supondo que nós temos um governo. A minha hipótese é que temos um governo muito fraco. Um presidente da República que não tem um programa. Um ministro da Economia que não tem um programa e vários outros ministros gastadores que têm programas demais. E em vez de pensar em resolver o problema do País, o nosso presidente pensa na sua eleição em 2022 para manter a sua popularidade. Isso faz que o esquema proposto pelo Armínio não tenha qualquer chance de frutificar e dar bom resultado.
● Por quê?
Quando há um governo de má qualidade, é preciso impor a esse governo a restrição fiscal de fora para dentro. Essa restrição está implantada na Constituição. Se esse governo resolver mudar de roupagem, de ideologia, de forma de pensar sobre o Brasil e disser “não, desculpe, eu cometi um erro, vou sim fazer uma reforma administrativa dura, que pega os funcionários atuais e os que vão entrar” e, com isso, abrir espaço no teto para fazer transferência para as famílias de renda mais básica, eu retiro as minhas críticas. Mas o que eu estou vendo esse governo fazer não é isso. O que se discute é uma forma de flexibilizar o teto para, no fundo, continuar gastando. Um País que já gastou tudo que podia gastar. Nas condições de governo que temos, não podemos deixar de exigir que se mantenha a âncora fiscal.
● Há risco de o governo tentar segurar a inflação com intervenção maior no câmbio?
A única coisa que eu digo é: o risco é fiscal. Ele se manifesta nos mercados. Ou ele se manifesta no mercado de juros, e se manifestou e inclinou a curva, ou se manifesta no mercado de câmbio, e se manifestou e depreciou (o real). Se intervier no mercado de juros achatando a curva de juros, não elimina o risco. O risco vai para o câmbio e aumenta a pressão sobre o câmbio. Se intervier no mercado de câmbio e evitar uma depreciação, o risco não foi eliminado, ele migra para o mercado de juros. Você não escapa. Não tem capacidade se segurar esse câmbio.
● O ambiente político, com uma disputa ferrenha pela eleição da Câmara, atrapalha?
No passado, tínhamos uma coisa que se chamava presidencialismo de coalizão. Ela existiu no governo FHC, quando tinha três partidos, o PMDB, PSDB e PFL, que fizeram um acordo prévio. A reeleição foi um erro que trouxe consequências. Depois, tivemos a derrubada da cláusula de barreira pelo Supremo (exigência para que partidos atinjam desempenho mínimo na votação para continuar tendo direito à propaganda gratuita e ao fundo partidário). De lá para cá, liquidou-se com a possibilidade de ter um presidencialismo de coalizão. A pulverização partidária aumentou e hoje temos vinte e poucos partidos e o governo tem de fazer uma coalizão em torno de interesses pessoais e de facções dos partidos. O que estou fazendo é uma crítica direta ao Centrão, que dá suporte o presidente no Congresso. O Centrão não é um grande partido de centro, mas uma coalizão de partidos fisiológicos que só aprovam à custa de transferência de renda para o seu Estado, uma determinada estatal, o que no fundo torna extremamente difícil fazer reformas que cortem gastos.
● Mas o presidente também não mostra disposição de perder a popularidade com medidas duras de corte de gastos…
Não, não tem da parte do presidente simpatia por um modelo que produz mais austeridade fiscal. E não há da parte do Congresso o desprendimento de saber que o Brasil precisa de apoio. Numa situação como esta, vamos chegar ao fim deste ano com desemprego em 16%. É só fazer conta. Não é o pico. No começo de 2021, vai subir ainda mais. Vira o ano com zero de ajuda emergencial para os 66 milhões que recebiam e um desemprego de 16%. Olha a pressão que vem para aumentar gasto!
● Como se responde a essa pressão?
Fazer uma transferência de renda cortando gastos. Não significa aumentar gastos. Se o governo fizer reformas que economiza outros gastos e, com isso, transferir renda para quem estiver desempregado, não é um erro. É remanejamento de gastos.
● Há um movimento nessa direção?
Não. Então, vemos pressão sobre o câmbio, inflação e o coitado do BC tendo de conviver com esse tipo de dilema.
● O BC vai responder como?
Já vimos algumas reações. Estamos vendo o Roberto Campos Neto (presidente do BC) lutando e conseguindo uma vitória importante quando convenceu o Davi Alcolumbre (presidente do Senado) a votar a autonomia do BC. Ele tem de ter autonomia. Ele pode mexer na taxa de juros à vontade, mas se o presidente quiser demitir o presidente do BC , ele põe alguém mais dócil e está tudo feito. O BC sabe que corre o risco de subir juros. Se ele não tiver as condições adequadas e o câmbio começar a depreciar, vai ser compelido a subir. Se ele subir a taxa, precisa ter independência política. Se a parte fiscal falhar, o risco de subir é muito alto.
● O presidente do BC estaria, então, se preparando, com a autonomia, para pressões futuras no caso de ter de subir os juros?
Isso. Ele jamais vai confessar. Se eu estivesse no lugar dele, estaria fazendo a mesma coisa.
● Há condições de avançar até final do ano a votação das propostas econômicas?
Eu gostaria que pelo menos a PEC emergencial (com medidas de cortes de despesas, principalmente relacionadas a servidores) fosse aprovada até o final do ano. Não tenho esperança que saia a reforma tributária, administração, nada disso.
● Como a economia do Brasil entra 2021?
Entra com muita incerteza, entra com investimento lá embaixo, economia andando de lado, pressão sobre o câmbio e o risco da inflação subir em 2021. É um cenário muito feio.
● A equipe econômica do ministro Paulo Guedes está negando essa visão?
Não consigo ver uma estratégia que faça sentido para resolver o problema. Não sei o que eles estão querendo ganhar de tempo. Mas sou crítico à forma como estão conduzindo a situação. Ela vem falhando muito na concepção da agenda de reformas e está com timing e objetivos errados.
● O que pode ajudar a melhorar a economia?
Uma reforma administrativa bem feita que abranja tudo e uma reforma tributária que tire as distorções, a PEC 45 (proposta de reforma tributária que tramita na Câmara). Essas duas coisas ajudam muito.
● Há risco de dominância fiscal?
É uma situação na qual, devido à expansão fiscal muito forte, a eficácia da política monetária desaparece. A capacidade da política monetária controlar a inflação, no limite, pode até desaparecer. Se o governo ficar preso ao teto, não vejo esse risco. Vejo a potência da política se mantendo e a capacidade de o BC controlar a inflação. Mas, se abandonar e furar o teto, aí sem dúvida ficamos sujeitos à dominância fiscal.
O ESTADO DE S. PAULO